Globalização x cinderela
Marcelo Barreto
Marcelo Barreto
Num dos capítulos de "Soccernomics", livro que já citei neste espaço, o texto do jornalista Simon Kuper aponta, com base nas fórmulas matemáticas do professor Stefan Szymanski, para o novo celeiro de craques do futebol mundial: os subúrbios das grandes capitais europeias. Lá vivem os filhos de imigrantes. Meninos que têm garantidas pelo estado as condições básicas de saúde e educação, mas que quando crescem não competem pelos melhores empregos. Se buscam uma oportunidade melhor nos campos e mostram talento com a bola, têm boas chances de ser observados " as divisões de base das principais seleções têm estruturas fortes e de alcance nacional.
Escrito em 2009, o capítulo parece inspirado na França de 2018. A finalista que chega como favorita à decisão de hoje tem oito de seus 23 convocados nascidos nos Banlieues, os subúrbios de Paris. Entre eles, Kylian Mbappé, filho de camaronês e argelina que saiu de Bondy, a 11 quilômetros da Torre Eiffel, para Clairefontaine, sede do centro de treinamento da seleção " que não é só uma Granja Comary, e sim um centro de inteligência esportiva conectado aos principais clubes formadores do país. Aos 19 anos, Mbappé é o mais forte candidato a melhor jogador jovem da Copa e pode acumular o prêmio de melhor jogador da competição.
E a França ainda exporta " ou devolve " talentos. Cinquenta jogadores nascidos no país foram inscritos nesta Copa, 29 deles por Senegal, Tunísia, Marrocos e Portugal. O Brasil, segundo nessa lista, teve os 23 de Tite mais cinco: Diego Costa, Thiago Alcântara e Rodrigo, pela Espanha; Mário Fernandes, pela Rússia; e Thiago Cionek, pela Polônia. Além de perder o posto de celeiro do futebol mundial, a seleção brasileira enfrentou dificuldades contra uma seleção com base de imigrantes, a Suíça; e foi eliminado por outra, a Bélgica.
Pode não ser só por causa das correntes migratórias, mas o mapa do futebol mundial está mudando. O penta de 2002 foi a última conquista sul-americana numa Copa. De lá para cá, só estiveram em semifinais os países do continente que já foram campeões " Brasil, Argentina e Uruguai. Na Europa é diferente: todos os donos de taça do século passado " Alemanha, Itália, França e Inglaterra " chegaram às semis neste; e a eles se juntaram Espanha (para também ser campeã), Holanda, Portugal, Bélgica e Croácia.
Justamente esta última quebra a lógica da influência da imigração " porque no futebol, como na vida, há sempre a exceção que confirma a regra. A Croácia, durante boa parte de sua curta história, exportou não apenas jogadores, mas todo tipo de gente que fugia da guerra e de suas consequências. Rakitic, um dos craques do time, nasceu na Suíça pouco antes da independência do país, onde jamais morou.
Talentos como o dele e o de Modric, outro candidato a melhor jogador da Copa " que perdeu o avô fuzilado na guerra e quase não ganhou uma chance nas divisões de base por ser considerado muito franzino ", não são revelados e desenvolvidos por um sistema semelhante aos dos grandes países europeus. A federação, apesar do carisma de um presidente que já foi semifinalista e artilheiro de uma Copa, enfrenta problemas de organização. O atual treinador assumiu o cargo no meio das eliminatórias, com a classificação em risco. Aqui mesmo, na Rússia, um jogador foi cortado por se recusar a entrar numa partida a 5 minutos do fim e um membro da comissão técnica também voltou para casa, por conta de uma manifestação política.
Foi assim que um país de 27 anos de idade e menos de cinco milhões de habitantes levou sua seleção à final de uma Copa do Mundo. Como não amar uma história de Cinderela dessas? A geopolítica e a organização do futebol não ficam de lado por causa dela. Mas Paris pode esperar.