Viernes, 19 de Abril de 2024

Território conquistado

BrasilO Globo, Brasil 15 de julio de 2018

Depois de 35 dias e mais de 9 mil quilômetros sobre trilhos, eu não conseguia segurar a ansiedade. ...

Depois de 35 dias e mais de 9 mil quilômetros sobre trilhos, eu não conseguia segurar a ansiedade. A jornada transiberiana estava chegando ao fim, e em um lugar mítico: Vladivostok. Um nome tão familiar " ao menos para quem brincou nos anos 1980 com o clássico jogo de tabuleiro "War" ", e uma cidade ao mesmo tempo tão distante e desconhecida para os brasileiros.
Os quilômetros finais pareciam intermináveis, e a expectativa só crescia enquanto o trem entrava na zona urbana. A estação ferroviária de Vladivostok fica em uma área bem central, o que proporciona belas vistas na reta final da viagem.
No mapa um tanto distorcido do famoso jogo, a cidade era um ponto estratégico do qual, com sorte nos dados, era possível atacar locais tão diferentes como China, Japão e até o Alasca, invadindo a América do Norte. Na vida real, Vladivostok sempre teve importância ímpar para a Rússia. As fronteiras com China e Coreia do Norte estão a poucos quilômetros de distância, e o Japão também fica logo ali.
A cidade tem um histórico de batalhas que remonta a disputas com os chineses no século XIX. Na Revolução Russa, Vladivostok foi o último território a ficar sob o domínio dos bolcheviques, sendo conquistada apenas em 1922. Não por acaso, fortes estão por toda parte, e o turismo de guerra é uma das atrações na região. Para completar, hoje a cidade é a base da frota russa no Oceano Pacífico.
Não é possível, claro, visitar um navio ativo da marinha russa, mas que tal uma jornada ao passado? Um dos principais pontos turísticos de Vladivostok é o aposentado submarino S-56. A embarcação teve papel importante na Segunda Guerra, afundando quatro navios alemães, e hoje virou relíquia. O submarino tem 77 metros de comprimento, mas lá dentro parece ter 77 centímetros. Ok, é um pouco de exagero, mas é bem apertado.
Quem gosta de turismo de guerra se esbalda mesmo é na Fortaleza de Vladivostok. Um forte desativado convertido em museu, com uma vista incrível da baía de Golden Horn e muitos equipamentos históricos. Canhões, metralhadoras, mísseis, baterias antiaéreas. Tem de tudo para quem quer fazer aquela foto posando de Rambo.
Vladivostok, porém, não é só formada de canhões de guerra. Conhecida como São Francisco da Rússia, a cidade de 600 mil habitantes é hoje muito mais paz e amor. O apelido deve-se às inúmeras ladeiras e colinas, que tornam as caminhadas um ato de fortalecimento das panturrilhas e do caráter.
As ruas são vibrantes, com um ar cosmopolita e muita gente " são inúmeros os turistas chineses " circulando e curtindo o dia e a noite. Moderna, possui a maior ponte estaiada do mundo, com mais de um quilômetro de comprimento. Para quem passou recentemente por Mogocha e Birobidjan, Vladivostok é um choque. Parece a capital do mundo.
amiga de mogocha
Mesmo em dia útil, a Sportivnaya, um lindo boulevard à beira do Mar do Japão, fica quase lotada. Famílias curtindo o sol na praia (bem fraquinha, preciso dizer), muita gente em pedalinhos e caiaques alugados e mais gente ainda caminhando ou apenas sentada, tomando um sorvete e vendo o movimento. A Fokina, uma rua de pedestres, fica poucos metros depois, cheia de lojas, bares e restaurantes. Colado à Sportivnaya fica o pequeno estádio do clube local, o Luch-Energiya. Uma pena não ter recebido jogos da Copa. Seria incrível ver uma partida do Mundial paralisada porque a bola foi parar dentro do mar.
Uma das mais inusitadas atrações de Vladivostok está um pouco mais distante. A cerca de 20 quilômetros do centro, a praia de Steklyashka é um exemplo da capacidade da natureza de pegar limões e transformar em limonada. Décadas atrás, o local era ponto de despejo de garrafas velhas e detritos de uma fábrica de porcelana. A ação do mar foi polindo e arredondando o material, criando a hoje chamada Glass Beach. Praia do Vidro. Por sobre a areia, milhares de pedacinhos coloridos de vidro conferem um visual único.
A ação humana, que por linhas tortas formou esse lugar surreal, pode acabar com ele em um futuro não muito distante. Glass Beach virou um badalado ponto turístico, e é comum os visitantes levarem um pedacinho de vidro como recordação. Segundo Peter Brovko, professor do Departamento de Geografia da Far Eastern University, a praia pode sofrer os danos desse turismo:
" Ela foi formada mais de 50 anos atrás, e temo pelo futuro. Mas espero que não desapareça nos próximos 20 ou 30 anos.
Não bastasse o visual único, Glass Beach ainda me reservou outra surpresa. Quando estava caminhando pela areia para ir embora, fui chamado por uma mulher. "Olá! Oi!" Quem era, meu Deus?? O rosto parecia familiar. Ela não falava inglês, mas estava feliz em me ver e foi tentando se comunicar.
" Mogocha!
Quase saí correndo. Nem me fale em Mogocha.
" Meu filho! A criança.
Lembrei. Era a mãe do menino de cerca de três anos que me fez companhia (e não me deixou dormir) por 26 horas em um trecho da jornada. Em uma praia afastada de Vladivostok, eu encontrava uma pessoa que havia dividido cabine comigo há uns três mil quilômetros. Uma coincidência incrível. O mundo é enorme, mas ao mesmo tempo é um ovo.
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