Viernes, 19 de Abril de 2024

Esferas de ilusão

BrasilO Globo, Brasil 19 de julio de 2018

Cora Rónai

Cora Rónai
Uma vez, há muitas e muitas luas, o jornal fez uma reportagem sobre os médicos da moda, os magos que mantinham as celebridades magras e aos quais gordinhas anônimas recorriam na esperança de caber no jeans de antigamente. Repórteres marcaram consultas como clientes comuns e pegaram receitas, que foram submetidas a profissionais mais sérios: a maioria continha substâncias inócuas, quando não perigosas ou proibidas.
Pois eu havia consultado oito daqueles dez médicos, e havia gastado fortunas naqueles venenos. As bolas me deixavam vagamente histérica e completamente insone, mas emagreciam " um pouco, e no começo. Depois de uns tempos eu desistia de ser magra porque não aguentava mais ser maluca, e pronto, lá iam os meus sonhos de elegância pelo ralo. Passado um tempo, eu recomeçava tudo de novo, num outro médico.
Eu sabia que eles eram picaretas, e eu sabia que eles sabiam " as luvas de pelica com que nos tratávamos durante as consultas não deixavam margens a dúvidas. Eu os desprezava por ser quem eram, e eles me desprezavam por eu ser quem era, uma criatura acima dos 40 quilos que frequentava picaretas. Estávamos quites. Mas cumpríamos o nosso ritual de hipocrisia porque precisávamos uns dos outros, eles do meu dinheiro, eu das suas receitas. A respeito das quais, aliás, eu também não tinha muitas ilusões.
Como é que uma pessoa alfabetizada e relativamente inteligente se prestava a esse papel?
A resposta é simples: mesmo uma pessoa alfabetizada e relativamente inteligente se presta a qualquer papel " ou, vá lá, quase qualquer papel " se estiver acima do peso numa sociedade que preza a magreza acima de todas as demais virtudes.
Pensei nisso enquanto via as fotos postadas pelo Dr. Bumbum para os seus quase 660 mil seguidores no Instagram. Tudo lá grita "Pilantra!", do português tosco das legendas às clássicas fotos "antes x depois", passando pelos retratos cafonas, pelas frases de autoajuda e pela arte canhestra dos comerciais. Nada se salva. O conjunto da obra é um gigantesco sinal de alerta " mas para uma pessoa que não está feliz com o seu corpo, pode ser que o próprio sinal de alerta funcione como chamariz. Vá entender a alma humana.
Na época da reportagem, escrevi sobre a minha experiência com os picaretas do emagrecimento. Contei mais ou menos o que acabo de contar, e terminava fazendo uma brincadeira, dizendo que ia mudar de vida... depois que fosse a um cara maravilhoso ali na Barra que prometia secar a criatura em menos de duas semanas com algas dos Alpes Marítimos. Era piada, e estava claramente escrito como piada; "algas dos Alpes Marítimos" eram invenção minha, uma gozação com os nomes dos ingredientes exóticos que costumam compor as fórmulas "alternativas". Ainda assim, passei meses tendo que explicar para amigas e conhecidas que aquele homem não existia, que era só uma brincadeira, que os Alpes Marítimos são uma cadeia de montanhas e que algas não nascem em montanhas. Todas ficavam muito frustradas ao saber disso; elas achavam que era a sério e, assim como eu, também esperavam um milagre que resolvesse tudo.
Não é difícil entender o que levou a bancária que morreu a sair de Cuiabá para uma aventura cirúrgica no Rio. Também não chega a ser de todo impossível compreender por que aceitou ser atendida num apartamento " tinha comprado passagem, tinha viajado, estava sozinha numa cidade estranha. Desistir não é tão simples assim quando já se investiu tanto, financeira e emocionalmente.
Apesar da irresponsabilidade em grau máximo e da ficha corrida, o Dr. Bumbum não é, no fundo, tão diferente daqueles magos das dietas que, numa escala menos letal, também jogavam com a saúde dos pacientes; a mulher que buscava formas perfeitas ignorando todo o risco não é, no fundo, tão diferente de qualquer outra (ou outro) de nós, que sempre achamos que precisamos "consertar" isso ou aquilo.
Na verdade, o que precisa mesmo de conserto é essa doença coletiva que transformou o Brasil num dos países onde mais se realizam cirurgias plásticas no mundo, e onde passamos a vida nos preocupando com a nossa aparência; é essa obsessão com uma "perfeição estética" que tem quase tão pouco de estética quanto de perfeita. No emblemático Instagram do Dr. Bumbum, bundas perfeitamente normais e saudáveis viram balões empinados e artificiais, que não guardam nenhuma semelhança com a realidade " assim como, há tempos, os peitos que vemos na praia e nas escolas de samba deixaram de ser peitos comuns, e perfeitos, para se transformar em esferas de silicone e poder.
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Há dois livrinhos miúdos e encantadores nas livrarias: "Minha noite no século vinte e outros pequenos avanços", de Kazuo Ishiguro, e "Meu livro violeta", de Ian McEwan. O primeiro, traduzido por Antônio Xerxenesky, é o discurso do Nobel lido em Estocolmo no ano passado; o segundo, traduzido por Jorio Dauster, reúne um conto e o libreto de uma ópera em dois atos. Os dois foram publicados pela Companhia das letras. Esqueçam a palavra "discurso" e o que ela guarda de lembranças empoeiradas. Ishiguro fala da sua vida literária, do seu coração dividido entre a Inglaterra e o Japão, das suas influências e, especialmente, de como a cultura pop foi fundamental para definir os seus principais romances. Já Ian McEwan conta a história de um escritor que rouba o livro " e a vida de glórias " de um colega mais talentoso. Ambos são leituras deliciosas.
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