Jueves, 28 de Marzo de 2024

A carta, os trens, os livros

BrasilO Globo, Brasil 22 de agosto de 2019

Cora Rónai

Cora Rónai
Dia desses chegou uma carta. Era comum isso acontecer antigamente, mas hoje é raro e chama a atenção. Uma carta gorda, bem recheada: várias páginas escritas à mão, em folhas pautadas retiradas de um caderno espiral, acompanhadas de uma quantidade de páginas xerocadas de livros, cheias de anotações. Espalhei tudo em cima da mesa, sem saber por onde começar " havia muito carinho e muito trabalho investidos naquela correspondência.
Comecei pelas seis folhas que me pareciam diretamente endereçadas.
"Meu nome é Rosangela e tenho 62 anos. Nesse momento em que escrevo, já não tenho certeza se a minha ideia foi boa. Tenho uns livros, biografias e autobiografias, comprados há décadas em sebos do Centro, que passei a reler. Na autobiografia da Agatha Christie, por exemplo, li uma observação muito interessante: ela conta que viu o brasileiro Santos Dumont voar em Paris."
O trecho está entre as páginas em xerox, sublinhado com caneta vermelha:
"Em 1911 aconteceu algo que considerei fantástico. Subi num aeroplano! Os aeroplanos eram, é claro, um dos principais temas de conjecturas, discussões, ceticismo e tudo o mais. Quando eu estava no colégio, em Paris, fomos um dia assistir a uma das tentativas de voo de Santos Dumont no Bois de Boulogne. Tanto quanto eu me lembro, o aeroplano subiu, voou alguns metros e depois caiu. De qualquer modo, foi impressionante."
Há outros trechos, com histórias de Lilli Palmer, David Niven, Lauren Bacall, recolhidos de outros tantos livros. Em alguns casos, como na marcação feita com tinta vermelha, as anotações são recentes; em outros, fazem parte da xerox. Minha correspondente informa que seus livros são todos assim, riscados e anotados.
"Agora estou achando muita pretensão minha, mas tive a ideia de xerocar esses casos " informar uma jornalista muito competente, eis a minha pretensão (aqui entraria aquela carinha sem graça, pedindo desculpas, do WhatsApp) " e enviar, sempre pode ser útil."
A carta da Rosangela é muito mais do que uma carta: é um pequeno tesouro, na forma de uma conversa em módulos.
"Um dia eu estava num trem de Santa Cruz, lotado, às sete e pouco da manhã, e vi um rapaz meio gordinho, alto, mochila na frente, se equilibrando enquanto lia um livro imenso. Como sempre, procurei ver a capa, e me surpreendi: ‘A divina comédia’, em edição bilíngue. Confesso que hoje me sinto um pouco preconceituosa com a minha reação em ver alguém que mora tão distante com um livro desses. Ele estava no meio do vagão, o que significa que pegou o trem bem antes de Padre Miguel, onde eu moro. Trem lotado, você entra e brinca de estátua, não dá para se mexer, só ser empurrada. Mas desde esse dia eu passei a anotar todos os títulos ou autores que eu conseguia ver no trem ou no metrô."
Essa lista faz parte do material da carta e hoje está em minhas mãos. Começou a ser feita em 2015 e ocupa 23 páginas de 24 linhas cada. Seu conteúdo é tão variado quanto os leitores que, ao longo desses anos, brincaram de estátua perto do olhar atento de Rosangela Cosme da Silva, afiada observadora do cotidiano.
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