Jueves, 28 de Marzo de 2024

O monstro

BrasilO Globo, Brasil 20 de febrero de 2020

Cora Rónai

Cora Rónai
Era um monstro imenso, com várias cabeças, olhos injetados, um cinturão com dezenas de crânios humanos pendurados e dúzias de braços, cada mão segurando uma coisa mais assombrosa do que a outra, os muitos pés esmagando criaturas humanas e não humanas. Estávamos juntos numa sala do Museu de Arte Asiática de São Francisco, onde ele era a peça principal de uma exposição sobre budismo tibetano, e eu era uma das pouquíssimas pessoas presentes na quarta-feira passada.
O monstro, da minha altura e sobre um pedestal, estava singularmente bem apresentado, iluminado por umas poucas luzes no ambiente escuro, enquanto ao fundo se ouviam vozes gravadas recitando mantras; o efeito lúgubre era realçado pelo frio.
Senti um medo muito real diante daquela escultura em madeira policromada do Século XVI, com cores e dourados tão vivos como se tivesse saído há pouco da oficina onde nascera há 500 anos.
Ainda não sei que bicho me mordeu, porque já vi diversas estátuas pavorosas feitas por grandes especialistas no assunto, do México ao Camboja, e nunca nenhuma me amedrontou tanto. Vi inclusive outras versões desse mesmo monstro no Tibete, sua terra natal, a maioria mais simples, à venda em galerias de arte e lojas para turistas, mas uma ou outra até mais imponente, nos mosteiros e na Potala, o antigo palácio do Dalai Lama.
Havia um banco em frente à estátua tenebrosa e eu me sentei lá, ouvindo os mantras, enquanto tentava contar os seus braços e entender o que tanto me assustava. Imaginei que efeito a imagem não deve ter tido sobre gerações e gerações de tibetanos, fechada num mosteiro, iluminada por lamparinas flutuando em gordura de iaque, sombras dançando nas paredes; lembrei do frio desgraçado que senti no Himalaia e do cheiro das lamparinas.
Mas o museu fechava em pouco tempo, e eu ainda queria ver outras coisas. Antes de ir em frente gravei um story no Instagram para compartilhar o monstro com os meus amigos, mas sou ruim de stories e não sei se consegui transmitir a intensidade do meu sentimento. A saída da sala dava para uma passagem ampla por onde o sol entrava através de uma claraboia, e onde descobri o alívio que sente alguém que encontra o caminho depois de se perder numa gruta escura.
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Lendo mais tarde sobre o monstro, fiquei sabendo que ele é uma entidade benfazeja, e que representa a vitória do espírito sobre a morte. As 16 pernas do Vaijrabhairava designam 16 tipos de vazio, e as criaturas a seus pés são os nossos apegos e ilusões. Os 34 braços, combinados com as três essências do ser, expressam uma fórmula filosófica budista em que 37 diferentes qualidades levam ao despertar; cada uma das armas que segura simboliza um aspecto do desenvolvimento espiritual, usado para destruir os diversos obstáculos para a iluminação.
Em suma: sabe tudo o Vaijrabhairava, e tem todas as certezas.
E desde então estou rolando essa ideia na cabeça, a noção de um "bem" tão terrível que nem se pode olhá-lo, e me peguei pensando se, afinal, esse monstro antigo não é paradoxalmente contemporâneo.
Esconjuro!
Quero apenas gente humana, cheia de falhas e de incertezas.
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