Viernes, 26 de Abril de 2024

O mal da pilha

BrasilO Globo, Brasil 20 de agosto de 2019

Arnaldo Bloch

Arnaldo Bloch
Não sei bem quando "pilha" deixou de ser só aquele cilindro químico de vários tamanhos que se botava no rádio, na lanterna e até na TV, e virou metáfora para estados emocionais. Um belo dia, amanheceu sinônimo de energia ruim, transferível e viciante. Neura, grilo, piolho no olho, pulga atrás da orelha: pilhado é o cara com olheiras, que se irrita fácil, "pega" ou "toma" pilha, como se bebesse aquele veneno cor de ferrugem que escorre das velhas amarelinhas.
Verbo reflexivamente recente, "pilhar" faz também pensar em pilhagem, no sentido de roubo. Afinal, a pilha rouba tempo, paz, sabedoria e, óbvio, energia, da vítima. Até chegar o dia em que, em vez de estar na pessoa, a pilha se funde com ela e começa a marcar o passo do fim. É a transição do homo sapiens para o homo altilium, que é a pilha posta em latim.
Mas além de ser "posta" (como um ovo) por outrem, a pilha, cada vez mais, é, também, imposta pelo pilhado em si, de si para si. É o processo da "autopilha", ou, mais simples, do "pilhauto", apreciado por narcisistas, onanistas, ególatras e sociopatas adultos. Essas pessoas são pilhas giratórias ambulantes que, para aliviar seu complexo de inferioridade, e alienar-se de suas próprias inadequações, culpas e vergonhas, passam a pilhar o próximo.
A pilha, assim, está na raiz de todos os males, e também nos males que infestam as raízes mais sãs. Que, reencarnadas em florestas virtuais devoradoras de cérebros, mudam a paisagem psíquica do planeta. O mal da pilha está na origem da maior parte dos conflitos que flagelam o mundo de hoje. E garante o café kopi luwak de meia dúzia de grandes magos logarítmicos, cujas redes sociais são movidas à base de ressentimentos, recalques, desejos de vingança, ódio e preconceitos, em consensos burros ou disputas cegas.
É um festival permanente de bullying intersubjetivo on-line, extensivo ao presencial, ao sexual e ao sensorial. A resultante degenera num combustível em linha para qualquer projeto de extermínio de tudo o que, por ser diferente, autônomo ou livre, ameaça o território da covardia compulsiva.
O pilhador quer eliminar o pilhado em nome de uma "pilha nova", sem perceber que, uma vez varridos os inimigos da face da Terra Plana, inicia-se a guerra final do vencedor contra o vencedor. Não é uma guerra antropofágica. Em vez de se entredevorarem, os últimos pilhados entrepilham-se, enxovalham-se, até que a energia se expanda numa entropia final: um cogumelo amarelo hipertóxico, que liquida com os últimos sinais de inteligência da espécie.
A pilha também é o mal dos que passam o dia a choramingar, catando pilhas nas ruas e nas redes, em zaps, posts, tweets ou o diabo a quatro, ao quadrado e ao cubo. Esses pilhados chorões brigam entre si e atacam, principalmente, os mais equilibrados, que são seus irmãos e têm o antídoto contra a pilha.
Assim, em vez de montar estratégias conjuntas de reação, fazem o jogo do grande irmão pilhador (que está mais para cunhado), contribuindo para a marcha final, quando todos cavarão, resignados, suas próprias covas, dentro das quais passarão a viver, e ver o mundo refletido por uma chama que projeta sombras na parede.
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