Viernes, 26 de Abril de 2024

Maquiagem como terapia

BrasilO Globo, Brasil 6 de agosto de 2020

Cora Rónai

Cora Rónai
Houve uma época em que eu comprava rios de maquiagem. Muita coisa mesmo. Ia a feiras e congressos de tecnologia, que sempre foram um ambiente essencialmente masculino, e depois fazia detox em lojas de departamento comprando batons e bases e toda espécie de coisinhas coloridas e cheirosas. Tudo caríssimo, porque eu não queria correr o risco de passar na pele nada que não fosse rigorosamente o melhor " mas esse risco a bem dizer nem existia, porque eu nunca usava nada.
Eu nunca usei maquiagem, não sei usar maquiagem, não tenho paciência para usar maquiagem.
Ficava particularmente feliz quando encontrava as ofertas feitas para fisgar incautas, e junto com a compra vinham sei lá mais quantos frasquinhos diminutos. Quando voltava para o quarto do hotel espalhava os meus tesouros sobre a cama e ficava olhando aquilo tudo, extasiada. Às vezes, nem tinha coragem de abrir as caixas; às vezes, passava um pouquinho de cada uma para ver como ficava. Outras vezes ainda tinha grandes crises de consciência por ter torrado tanto dinheiro em coisas que iam morar (e morrer) na gaveta do banheiro.
"Dessa vez vai ser diferente", eu me prometia " e aí, durante alguns dias, saía bem arrumada de casa, porque maquiagem pede um mínimo de elegância: mas não era eu. Invejava as amigas que se apaixonavam tanto por um batom, mas tanto, que, no fim, ficavam pescando o restinho do fundo do tubo com um pincel.
Ah, claro, eu comprava montes de pincéis também.
A questão é que nunca consegui resistir à beleza daquelas substâncias e estojinhos mágicos. Comprei um bronzer da Lancôme muito mais forte do que jamais conseguiria usar porque os vários tons do pó desenhavam um elefante; umas sombras da Dior porque foram prensadas com a textura do couro de um crocodilo; um compacto leve da Guerlain que se chamava parure de nuit e eu nem desconfiava como se usava, porque as cores estavam dispostas como penas de pavão; e météorites, muitos météorites, porque bolinhas coloridas.
Cheguei a escrever algumas vezes sobre os produtos que mais me fascinavam porque tenho o hábito de registrar o que me chama a atenção, mas essa fase durou pouco porque, afinal, o que eu gostava mesmo de fazer era arrumar e olhar os meus potinhos.
Não abro a gaveta onde eles dormem desde o começo da quarentena.
E só me lembrei deles porque, ainda agora, minha amiga Cássia Zanon confessou no Facebook que assiste a tutoriais de maquiagem (mas que não só não sabe para que serve a maioria dos produtos, como se angustia pensando em quantos demaquilantes e tônicos não serão necessários para remover tudo aquilo e deixar a pele respirar em paz).
E pensar nos meus brinquedinhos me deu uma saudade enorme deles, e fui para o banheiro e abri a gaveta e passei sem exagero umas duas horas arrumando e abrindo e cheirando e pincelando diferentes cantos nas mãos e me lembrando por que os comprei e me congratulando de ter cedido à tentação e de ter vivido a fantasia de um mundo delicado, brilhante e cheio de beleza.
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