‘Sparring’ nos treinos, quarto goleiro joga a vida por uma chance, que pode nunca vir
O homem invisível
O homem invisível
Gávea, sede do Flamengo, início dos anos 2000. Edílson Capetinha e Petkovic terminam o treino e caminham para cobrar faltas, um em cada lado do campo. Olham para o gramado e ambos chamam o goleiro Getúlio Vargas para a prática. Como os dois jogadores não se falavam, o então jovem formado no clube não sabia a quem atender. Cena comum na vida de um quarto goleiro, acostumado a ser uma espécie de auxiliar de treino.
" Você é invisível. Hoje tem rede social, os moleques estão lá. Na minha época, eu era destaque na base, mas no profissional era invisível. A imprensa não te olha, a diretoria também não. Se chegar com o cabelo amarelo, ninguém repara. Mas era parte do processo " conta Getúlio, de 37 anos, aposentado desde os 31, quando parou para investir em outras áreas.
Hoje, o ex-goleiro trabalha com marketing digital, após passagem como comentarista. Ele acredita que a experiência que acumulou como um goleiro que não jogava lhe ajudou " mais que os R$ 50 que recebia de Edílson como sparring nos treinos.
" Quando você é reserva no gol, consegue ver a bola sob outra perspectiva. Por isso tenho sucesso fora do futebol. Via os pormenores de diretoria, gestão, fisioterapia. Sempre tentando contribuir de alguma forma que não fosse dentro de campo. Decidi por questões pessoais parar" conta o ex-jogador, que passou pela Bélgica e por Portugal.
A história de Getúlio Vargas é um exemplo de que os caminhos percorridos por jovens goleiros nem sempre desembocam na sequência da qual Hugo Souza, o Neneca, usufrui aos 21 anos. Até pouco tempo, a hierarquia no Flamengo era clara: o primeiro, Diego Alves, o titular; o segundo, César, reserva imediato; o terceiro, Gabriel, relacionado; o quarto, aquele só treina, era Neneca, até que a lesão do primeiro e casos de Covid-19 no grupo o alçaram ao posto principal, que ocupa há seis jogos, mesmo com o retorno de Diego ao banco contra o Goiás. Domènec Torrent indicou que vai manter o garoto hoje, diante do Bragantino, às 20h, e até o veterano estar 100%.
oportunidade de ouro
Via de regra, os goleiros revelados no clube sofrem para ter uma única chance. Caso de Daniel Tenembaum, que jogou somente uma partida oficial, em 2014, a última do Brasileiro, e só porque César acabou expulso. Emprestado em 2016 ao Maccabi Tel Aviv, de Israel, se naturalizou no país e também serve ao Exército local em sua segunda temporada como titular.
A função de Daniel é administrativa e em horário alternativo ao dos treinos, mas obrigatória para quem se naturaliza até os 23 anos. Antes de deixar o Fla, ainda concluiu a graduação em Administração. Não quis esperar.
" Complicado ser terceiro ou quarto goleiro, só um joga. Difícil ter rotatividade. Você treina e só treina. No jogo, senta no banco, mas tem que ajudar o time. A função é no treinamento " conta Daniel, de 25 anos. Idade que, segundo ele, permite sonhar com a Europa.
No Fla, Daniel viu Paulo Victor ascender da base e conseguir emplacar duas temporadas como titular (2014 e 2015). Foi o último goleiro revelado pelo clube a ter uma sequência como a de Neneca. Coincidentemente, o preparador era o mesmo de hoje: Wagner Miranda, que apostou na então promessa. Mas falhas eventuais fizeram o Flamengo negociar Paulo Victor e contratar Alex Muralha.
" Paciência é a palavra. É um esporte diferente. É difícil ser goleiro. Não pode errar. Você pensa: se falhar, quando vai receber a chance de novo? Mentalmente, tem que estar muito focado " conta Daniel, que é amigo de Paulo Victor até hoje.
Antes disso, o Flamengo teve o ídolo Júlio César estreando no profissional com 17 anos, em 1997, e barrando Clemer depois de alguns anos, até tomar conta da posição de 2001 a 2004. Getúlio Vargas é da mesma época. Quarto goleiro com Clemer, terceiro com Júlio César e segundo com Diego. Este último, conta Getúlio, chegou a jogar logo após tirar uma pedra no rim para não dar brecha. Quando a chance veio, Getúlio teve uma crise de apendicite a caminho do Maracanã, e Marcelo Lomba acabou jogando. Em 2005, atuou contra o Paysandu, mas Diego, que passou mal, não queria sair.
Vida de goleiro é aproveitar as oportunidades. Brecha que Neneca, agora, quer agarrar com as duas mãos.