Guerra no sudão desloca 8,6 milhões em um ano
Pouco mais de um ano após o início de uma sangrenta disputa entre dois generais, o Sudão ...
Pouco mais de um ano após o início de uma sangrenta disputa entre dois generais, o Sudão vive "uma das maiores e mais desafiadoras crises humanitárias e de deslocamento do mundo", com milhões de pessoas desalojadas, segundo uma porta-voz do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur). Cerca de 40% da população também enfrenta grave insegurança alimentar e centenas de milhares de crianças sofrem de desnutrição aguda, segundo a ONU. Para especialistas ouvidos pelo GLOBO, o cenário é "humanamente inadmissível" e revela um profundo descaso da comunidade internacional, que participa ativamente das guerras em Gaza e na Ucrânia, "mas não dá a mesma atenção" para o povo sudanês.
cidades fantasmas
Dados do Acnur revelam que 8,6 milhões de pessoas foram deslocadas à força no último ano. O conflito fez com que mais de 6,7 milhões de sudaneses deixassem suas casas e mais de 1,8 milhão cruzassem as fronteiras do país rumo a territórios vizinhos como Chade e República Centro-Africana " que se veem diante de um fluxo inédito de refugiados enquanto suas populações já enfrentam instabilidades sociais e econômicas.
" Os números de deslocados e refugiados são assustadores " diz Alexandre dos Santos, professor de História da África da PUC-Rio. " Cidades inteiras, como a capital, Cartum, viraram cidades fantasmas. Enquanto os generais disputam o poder, as pessoas simplesmente morrem. O país entrou em colapso.
A crise teve início em 15 de abril de 2023, quando as tropas do comandante do Exército, Abdel Fatah al-Burhan, líder de facto do Sudão, e seu então número dois, Mohammed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti e líder das paramilitares Forças de Apoio Rápido (FAR), passaram a disputar o controle do país.
Em 2021, os dois generais haviam tomado o poder em um golpe de Estado, mas passaram a divergir sobre os planos de integração das FAR ao Exército oficial. A condição era crucial no acordo final para a retomada da transição democrática no país, que teve início em 2019, com a queda do ditador Omar al-Bashir após três décadas no poder.
" Milhões de vidas foram completamente destruídas, e as pessoas vivem com medo " afirma Olga Sarrado, porta-voz do Acnur. " As pessoas perderam membros da família, suas casas, e os ataques a civis continuam.
O medo é tanto, diz Sarrado, que transcorridos mais de 365 dias de conflito, milhares de pessoas ainda deixam o país diariamente, "como se a guerra tivesse começado ontem".
" Trabalhamos para realocar os refugiados que chegam aos assentamentos que já existiam ou em alguns novos que criamos, mas ainda há cerca de 150 mil pessoas na fronteira e em áreas remotas, onde não há nada. Isso envolve muitos desafios logísticos " explica.
Enquanto os deslocados concentram as camadas mais pobres da população sudanesa, uma parte significativa da classe média urbana (cerca de 500 mil pessoas, de acordo com o Acnur) busca refúgio no Egito, em especial a capital, que possui uma ligação direta por terra com Cartum.
" São arquitetos, médicos, professores, engenheiros, enfermeiras, universitários " elenca Sarrado.
Além do deslocamento recorde, quase 18 milhões de sudaneses enfrentam grave insegurança alimentar e mais de 730 mil crianças sofrem de desnutrição aguda, segundo a ONU. No campo de deslocados de Zamzam, em Darfur do Norte, ao menos uma criança morre a cada duas horas, de acordo com a Médicos sem Fronteiras (MSF), enquanto esse número chega a "mais de duas crianças a cada 12 horas" no campo de Kalma, em Darfur do Sul, segundo o grupo humanitário Alight.
" É humanamente inadmissível que a gente compactue com 40% da população de um país passando fome sem que a comunidade internacional tome ações contundentes para acabar com esse conflito ou para, ao menos, oferecer assistência a essas pessoas " diz Alexandre dos Santos.
ponta do iceberg
A ONU alertou, há duas semanas, que a crise humanitária desencadeada pelo conflito pode piorar drasticamente nos próximos meses, levando algumas regiões à fome. A emergência também pode se espalhar para os países africanos vizinhos, a menos que o conflito termine.
" O tempo está se esgotando " disse o porta-voz da Organização Mundial da Saúde (OMS), Christian Lindmeier. " Sem o fim dos combates e o acesso irrestrito para a entrega de ajuda humanitária, a crise do Sudão se agravará drasticamente nos próximos meses e poderá afetar toda a região. Vemos só a ponta do iceberg.
A OMS tem alertado sobre o colapso do sistema de saúde, que sofre com escassez aguda de pessoal, medicamentos, vacinas, equipamentos e suprimentos, enquanto o país enfrenta surtos de sarampo e cólera. Segundo Adnan Hezam, porta-voz do Comitê Internacional da Cruz Vermelha no país, 70% das instalações médicas não estão funcionando devido aos combates, "e as que ainda funcionam operam de forma crítica e com escassez de suprimentos e de pessoal qualificado".
Apesar dos dados alarmantes, o conflito parece estar longe do fim, avalia Santos. Enquanto o governo domina o mercado de exportação de petróleo, as FAR controlam a exploração das minas de ouro (antes nas mãos do Grupo Wagner, de mercenários russos). Assim, "cada lado garante o financiamento de suas próprias tropas", mas sem conseguir avançar no terreno.
Os esforços de mediação internacional conseguiram apenas anúncios de tréguas que rapidamente foram violadas. As sanções ocidentais ou o apelo de cessar-fogo do Conselho de Segurança da ONU, em março, também não apresentaram resultados. E ainda que a guerra acabasse hoje, o Sudão precisaria reconstruir "praticamente tudo", diz o especialista da PUC-Rio:
" Nem a riqueza gerada pelo petróleo vai possibilitar que o Sudão se reconstrua rapidamente. O país vai precisar da ajuda da comunidade internacional, mas essa mesma comunidade tem dado a entender que o conflito não merece a mesma atenção que Gaza ou Ucrânia, apesar de serem situações igualmente graves.