Magnatas da ia encampam a renda básica universal
A renda básica universal (RBU), política que prevê a distribuição de uma quantia mínima de ...
A renda básica universal (RBU), política que prevê a distribuição de uma quantia mínima de recursos para toda a população como forma de garantir a subsistência de todos, têm ganhado adeptos entre os magnatas da tecnologia. Nomes como Elon Musk " o homem mais rico do mundo, com uma fortuna estimada em US$ 240 bilhões " e Sam Altman, um dos fundadores e presidente da OpenAI, a empresa por trás da iniciativa de inteligência artificial mais conhecida do mundo, o ChatGPT, são entusiastas da ideia.
Há pelo menos oito anos, Musk defende a renda básica universal publicamente como solução para os impactos da automação do trabalho com o avanço da tecnologia, que, para ele, vai atingir todo tipo de função. É essa a resposta costumeira do empresário quando questionado sobre os danos que a inteligência artificial (IA) provocará à sociedade ao substituir profissionais. Para ele, o trabalho deverá ser opcional no futuro e todos precisarão ter sua subsistência garantida.
Outro entusiasta da RBU é Sam Altman. Diferentemente de Musk, Altman não só respalda a renda básica como levantou R$ 60 milhões para testá-la na prática. Os recursos foram para a OpenResearch, projeto criado por ele para realizar e documentar os projetos pilotos.
Durante três anos, a OpenResearch distribuiu US$ 1 mil mensais para um grupo de mil pessoas nos estados de Illinois e Texas. Outros dois mil participantes fizeram parte de um grupo de controle, com um cheque mensal de US$ 50. No período, os participantes responderam pesquisas, compartilharam relatos qualitativos e fizeram exames médicos. Os primeiros resultados foram publicados neste ano.
Em média, o aumento de renda dos indivíduos do primeiro grupo, todos abaixo ou na linha da pobreza, foi de 40%. A estimativa dos pesquisadores é que cerca de 81% dos recursos foram usados para gastos básicos como moradia; 22% para lazer e 3% para para pagar financiamentos. Em geral, os participantes relataram mais cuidados com a saúde, aumento na capacidade de poupança e redução de horas trabalhadas.
Assim como não é nova a discussão sobre a RBU, testes da proposta são feitos desde antes de os bilionários da IA se interessarem pela ideia. Um dos principais pesquisadores do mundo sobre o tema, o belga Jurgen De Wispelaere, coordenador da Basic Income Earth Network (Bien), ressalta que os pilotos têm limitações por serem temporários (o que muda a perspectiva dos participantes sobre como usar o recurso) e focalizados (não testam em populações mais amplas). Apesar disso, ele diz que são uma "espécie de laboratório", onde se pode observar como a RBU interage com diferentes contextos locais.
" Por ser temporário, claro que as pessoas vão pensar duas vezes antes de fazer uma mudança de carreira, por exemplo. Mesmo assim, conseguimos identificar efeitos importantes, em relação a estresse, saúde, bem-estar e confiança na sociedade. Outra razão desses testes é entender como encaixar essa renda extra na sociedade, a partir de quais mecanismos de governo " diz o pesquisador ao GLOBO.
Wispelaere trabalha em uma plataforma para mapear todos os experimentos em curso no mundo. Por enquanto, tem catalogados 18 pilotos, que somam US$ 286 milhões investidos, em seis países (Canadá, Finlândia, Índia, Holanda, Espanha e EUA). Nos EUA, por exemplo, a renda básica é testada em 35 estados com 150 iniciativas.
Diferentemente de programas sociais focalizados, como o Bolsa Família no Brasil, a RBU precisa ter algumas características: ser paga em dinheiro; atingir todas as pessoas sem distinção de renda, idade ou condição de emprego; não exigir contrapartida; ser regular e previsível.
concentração de renda
Viviana Santiago, diretora-executiva da Oxfam Brasil, observa que as discussões sobre renda básica acontecem em um momento em que o mundo atingiu o pico de concentração de renda, em níveis inéditos. Pesquisa recente da Oxfam mostrou que o 1% mais rico do planeta têm uma riqueza maior que os 95% mais pobres juntos.
Ela alerta que, sem abordar a "concentração de riqueza e sua tributação", os recursos para financiar políticas de bem-estar social "serão cada vez mais escassos".
" Falar sobre pobreza é metade da questão. A questão inteira inclui a concentração de renda, que só persiste porque não existe partilha da riqueza " afirma ela, lembrando que medidas de redução de desigualdade passariam justamente pela distribuição de recursos dos bilionários.
Sam Altman, da OpenAI também atua em outra frente relacionada que ele alega ser relacionada à renda básica universal. Trata-se da World, uma empresa que propõe uma tecnologia que garanta uma transferência individual de renda com a identificação de cada beneficiário com o escaneamento da íris. A empresa tem três frentes: o sistema para registro da identidade pelo olho; a geração de uma identificação biométrica individual; e uma criptomoeda como veículo do pagamento. O projeto foi relançado no mês passado, com o anúncio de que a companhia iria retomar o cadastro de interessados na América Latina.
" Como ele (Altman) acredita que as pessoas vão perder seus empregos e todos no futuro vão precisar de uma renda garantida, ele entende que um dos maiores desafios no futuro vai ser o de cada um provar a própria identidade " explica a fundadora e CEO da Oxygen, Andrea Janér, sobre a proposta da World. " Com a OpenAI ele criou uma questão cujas consequências serão resolvidas por essa empresa. Com isso, ele fecha um círculo. Porque ao mesmo tempo que tem uma visão de longo alcance, são eles que estão ditando o ritmo desse futuro.
Janér lembra que o Vale do Silício ventila discussões sobre renda básica pelo menos desde dos anos 2000, quando nasceram as redes sociais. O fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, e o do Twitter, Jack Dorsey, chegaram a endossar a ideia, mas não levaram adiante como Altman pretende. Para a especialista em inovação, no entanto, nenhum deles parece realmente engajado em gerar dignidade mínima a todos, como os fiadores "tradicionais" da ideia:
" Parecem muito menos preocupados com o futuro da Humanidade e mais com o poder e reações em cadeia.
A ideia coloca em lados opostos dois laureados com o Nobel neste ano. O cientista da computação e um dos pais da IA, Geoffrey Hinton, vencedor do prêmio de Física, chegou a aconselhar o governo britânico sobre a criação de uma renda básica universal para mitigar os impactos da IA na desigualdade. Já o Nobel de Economia e pesquisador do MIT Daron Acemoglu argumenta que a RBU é não só economicamente insustentável como pode ser pouco eficaz na redução da pobreza. Ele sugere, em vez disso, o fortalecimento de políticas sociais direcionadas, como o imposto de renda negativo e programas de capacitação.
tributação progressiva
Para os defensores, a RBU é um mecanismo de geração de autonomia, especialmente para os mais vulneráveis, ao criar uma base de segurança econômica de forma indistinta. Fábio Waltenberg, pesquisador da UFF, reconhece que um programa em larga escala ainda está distante, mas destaca que iniciativas práticas podem pavimentar esse caminho. Ele cita, por exemplo, programas de renda mínima para famílias com crianças, independentemente da classe social, em países europeus.
Responsável por testes da RBU em vários países, o pesquisador britânico Neil Howard, da Universidade de Bath, defende que a ideia de garantir dignidade mínima de forma indistinta deveria ser aplicada com políticas de tributação progressiva de renda. Com isso, ele argumenta, a renda básica seria custeada proporcionalmente pelos mais ricos, tornando-a mais sustentável:
" Se assumirmos que uma política como essa é financiada por uma tributação progressiva, ela se torna neutra em custo para os mais ricos. Mesmo que todos recebam, a renda básica será sustentada pelos impostos maiores daqueles com mais recursos.