Registros de violência aumentam desde a pandemia
Invisíveis
Invisíveis
O risco nas ruas
A violência e a discriminação contra a população em situação de rua é uma realidade. Foram 6.381 mil ocorrências no ano passado, das quais 92% envolvendo violência física. Houve uma redução expressiva em 2020, ano do isolamento social por causa da Covid-19, mas os registros voltaram a subir sistematicamente desde então, apesar de ainda estarem atrás do pico de 2019, de acordo com o ObservaDH, do Ministério de Direitos Humanos, com base no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.
Esses registros incluem, além da violência física, a psicológica, sexual, tortura, roubo, entre outras. Chama atenção a autoria dos casos: 199 foram cometidos por policiais, agentes da lei ou correlato.
Entre as vítimas de violência, as mulheres sofrem proporcionalmente mais, segundo o ObservaDH. Elas correspondem a 26% das pessoas em situação de rua, mas são 39% das vítimas, principalmente de agressão sexual e psicológica. A violência contra negros também é maior: 73% dos casos.
" Um fator que dificulta que as pessoas saiam da rua é o discurso aporofóbico (discriminação e preconceito contra pobres), não se consegue criar oportunidade " diz Regis Spíndola, diretor de Proteção Social especial do Ministério de Desenvolvimento Social.
Essa discriminação aparece até em falas de governantes, como a do governador de Minas Gerais, Romeu Zema, que comparou a população em situação de rua a carro enguiçado que deve ser guinchado. Ministério Público e Defensorias denunciam abrigos sujos, distantes, com restrição de horários e em pouca quantidade, o que dificulta o atendimento das cerca de 350 mil pessoas em situação de rua no país, de acordo com o Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal.
Joana Darc Bazílio da Cruz, presidente do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População em Situação de Rua (Ciamp-Rua Nacional) e coordenadora nacional do movimento de população de rua, ressalta que a discriminação impede até a abertura de centros de recolhimento:
" A sociedade não aceita, pressiona quando se abrem casas de acolhimento na vizinhança. Tem todo esse preconceito, que faz segregar ainda mais.
Mais vulneráveis
Jacqueline Potinelly Pereira, de 40 anos, conseguiu sair da condição de rua. Trabalha numa feira no Leme (Zona Sul do Rio) no fim de semana, faz reciclagem e recebe Bolsa Família. Com isso, pôde alugar uma quitinete no Pavão Pavãozinho, comunidade da Zona Sul do Rio. Ela conta que já sofreu racismo, transfobia, foi assediada e chegou a ser agredida com um soco.
" Fui assediada e denunciei e levei um soco. Perdi um dente.
Foi o crack que a levou a viver em situação de rua. Tinha emprego fixo, mas acabou largando tudo e ficando nas áreas de uso de drogas na Avenida Brasil.
" Larguei o crack e não bebo mais. Agora, estou buscando comprar geladeira e fogão para minha casa.
Pelos dados do Ministério dos Direitos Humanos, 5% das vítimas são transexuais. Maria Luiza Gama, diretora de Promoção dos Direitos da População em Situação de Rua do ministério, afirma que a prioridade é tirar crianças, adolescentes, idosos e população LGBTQIA+ das ruas, por serem as mais vulneráveis.
A defensora pública Cristiane Xavier, subcoordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos do Estado do Rio enfatiza que os crimes contra essa população mal são investigados:
" Essas pessoas são maltratadas, até mortas, e sequer tem apuração dos crimes. É difícil ter provas, as imagens nas câmeras de vídeo nunca chegam. Conseguimos imagens com particulares.
Outro foco preocupante são as violações de direitos humanos, como negligência, exposição de risco à saúde, tortura psicológica, maus tratos, constrangimento, exposição e abandono. Foram 13.369 casos em 2023, subindo para 20.682 no ano passado, conforme denúncias feitas na ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos.
Segundo Cristiane, há uma segregação contra essa parcela da população e algumas pessoas são retiradas à força, com casos de importunação de madrugada:
" Há um quê de crueldade quando não há ninguém vigiando, sendo testemunha.
Segundo ela, a Assistência Social Municipal do Rio está defasada na digitalização, o que torna o serviço mais lento. Não há rede integrada para saber onde há vagas para acolhimento, por exemplo, diz.
O Ministério Público Federal (MPF) reiterou ação civil pública movida, em conjunto com as Defensorias Públicas do Estado do Rio de Janeiro e da União, contra o município do Rio e a União, denunciando a omissão da prefeitura na implementação de políticas públicas para a população em situação de rua.
" É claramente insuficiente, é uma política muito localizada na assistência social e no braço repressivo, que é a guarda municipal, influenciando na má qualidade da política. É necessário aumentar os equipamentos e a transversalidade da atuação " diz o procurador federal, Júlio Araújo, um dos que assinam a ação.
Mais polos de abordagem
A Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS), consultada, diz que as abordagens sociais são realizadas 24 horas por dia, sete dias por semana e que em 2025 foram criados dez Polos de Abordagem Social. "A Coordenadoria de Ações Territoriais Integradas (Cati), da Seop (Secretaria de Ordem Pública), acompanha o trabalho dos assistentes e realiza apenas o ordenamento de acordo com o Código de Posturas Municipal. Vale destacar que comida, roupas, remédios e documentos nunca são levados", diz a secretaria.
O órgão diz que aumentou as vagas dos centros de acolhimento e que a cidade "conta com mais de 50 cozinhas comunitárias, que servem, diariamente, 280 refeições". Afirma ainda que os abrigos seguem as normas do Sistema Único de Assistência Social e passam por reformas para melhoria contínua. Nos espaços, como Unidades de Reinserção Social e albergues, são oferecidos cama, alimentação, higiene, guarda-volumes e apoio para inserção no mercado de trabalho.