Número de lesões cresce no futebol europeu, e razões vão além da quantidade de jogos
Corda esticada
Corda esticada
O ano de 2024 chega ao fim com uma até então improvável crise no Manchester City. Com uma vitória e dois empates nos últimos 12 jogos, o time do técnico Pep Guardiola tem dificuldade para se manter equilibrado diante de uma série de desfalques, sendo o principal deles de Rodri. O vencedor da última Bola de Ouro lesionou o ligamento cruzado do joelho direito e não jogará mais nesta temporada. Por ironia, o incidente ocorreu cinco dias após ele reclamar do calendário e afirmar que uma greve está próxima. O desabafo, no caso dele, veio tarde demais. As contusões e a quantidade de jogos dominaram os debates do futebol europeu nos últimos meses. E não por acaso. De fato, os atletas estão se machucando mais.
O relatório anual do grupo de seguros Howden mostra que a temporada 2023/2024 terminou com um recorde de 4.123 casos de lesão nos clubes das cinco principais ligas europeias (Inglaterra, Espanha, Itália, França e Alemanha). Ao todo, foram analisados 4.232 jogos, o que dá média de quase uma contusão (0,97) por partida.
Trata-se de uma curva ascendente. O número de lesões em 2023/2024 representa um aumento de 3,9% em relação ao período anterior e de 28,3% na comparação com 2020/2021.
O mesmo estudo utilizou o salário dos atletas e o período de ausência para estimar o custo destas lesões aos clubes. E a última temporada também foi de recorde: 732,02 milhões de euros (R$ 4,6 bilhões na cotação atual).
Consideradas as últimas quatro completas, os clubes europeus gastaram 2,3 bilhões de euros (R$ 14,7 bilhões) com atletas lesionados em decorrência de um total de 14.292 contusões. Números que evidenciam como a preocupação dos jogadores também é um problema dos dirigentes.
Alguns deles entraram nesta briga. Em outubro, a FIFPRO (sindicato mundial dos jogadores) e a associação das ligas europeias formalizaram queixa contra a Fifa na Comissão Europeia por abuso de poder. O motivo: a imposição da Copa do Mundo de Clubes, que será quadrienal e terá sua primeira edição entre junho e julho nos Estados Unidos. A expectativa é de que o processo tramite de forma lenta e não afete o torneio de daqui a seis meses. Mas os dirigentes se mostram esperançosos no médio prazo.
Mudanças no calendário
Assim como a Fifa, a Uefa também fez alterações no calendário ao implementar o novo formato da Liga dos Campeões. Agora, uma equipe pode jogar até quatro partidas a mais. As entidades mundial e continental e as ligas nacionais cada vez mais concorrem entre si pelas receitas do esporte.
Ainda assim, não se pode dizer que o aumento de lesões decorre do número de jogos. O Centro Internacional de Estudos do Esporte (CIES) analisou 40 ligas e constatou que a média de partidas não cresceu de forma significativa nos últimos anos.
Nem mesmo nas cinco principais da Europa, onde, ao longo de todo o século, a variação foi pequena. Na temporada 2000/2001, foi de 52,7 partidas por clube. Na última, de 2023/2024, de 50,8.
O que aumentou, sob um olhar histórico, foram os jogos destas seleções. Números da empresa de análise de dados Opta mostram que a média de partidas subiu entre a década de 1960 e a de 2000 (saíram de seis a sete por ano para 12 a 13). Mas, depois disso, esta marca se manteve estável.
O mesmo Rodri que desabafou contra o calendário veio de uma temporada 2023/2024 com 5.058 minutos jogados (por clube e seleção). Na anterior, somou 5.927. De acordo com o estudo do CIES, apenas uma minoria de 0,3% dos atletas possui minutagem média de 5 mil ou mais dentro das 40 ligas analisadas.
Esta parece ser uma sina dos melhores jogadores dos principais clubes e seleções. Messi ultrapassou a casa dos 6 mil minutos na temporada 2011/2012. Isso após três seguidas acima dos 5 mil " marca também superada por Rivaldo, em 1998/1999, e por Zidane, em 1995/1996.
Maior intensidade
Mas se o número de jogos não sofreu uma mudança impactante, o que explica o aumento recente de lesões e a sensação entre os jogadores de estarem próximos do limite? A resposta pode estar na evolução física dos atletas e no aumento da intensidade das partidas.
" A distância total percorrida quase não mudou, mas os esforços em alta intensidade cresceram drasticamente. Se fala muito de quilometragem total percorrida, mas pouco ou quase nada nas demandas que ocorrem em sprints, acelerações e desacelerações " aponta o fisiologista Altamiro Botino, coordenador científico do Cuiabá: " O jogo mudou na intensidade. Os jogadores estão muito mais fortes e, consequentemente, seus movimentos têm impactos com maior energia cinética e mecânica.
O que também mudou foi a natureza das partidas. Principalmente na Europa. Entre seleções, a Liga das Nações reduziu o número de amistosos, onde a intensidade e a pressão são menores. Entre clubes, houve a criação da Liga Conferência e o novo formato da Champions, alterado para ter mais clássicos.
" Outra questão pouco discutida é a gestão do estresse mental. Até pouco tempo atrás ninguém falava de burnout no futebol " acrescenta Botino ao citar outro impacto destas mudanças.
Em vez de melhorar a qualidade do trabalho, mudanças recentes como as cinco substituições só frearam sua deterioração. Mas a temporada atual, com lesões como a de Rodri e a de Carvajal (do Real Madrid), mostra que a corda está esticada. E o Mundial de Clubes vai arregaçá-la ainda mais.