As lições e realizações de jackie silva aos 62 anos
ainda estou aqui
ainda estou aqui
Entidade do vôlei mundial, primeira mulher brasileira a conquistar o ouro olímpico, em dupla com Sandra Pires, em Atlanta-1996, Jackie Silva precisa voltar ao seu lugar para se sentir campeã na vida. Ao raiar de cada dia, tira amigos e alunos da cama e bota todo mundo para evoluir nas areias de Ipanema. Do alto desempenho para o autoconhecimento, sua luminosa rede rosa foi se transformando num espaço de aceitação e acolhimento, até que nos últimos jogos do ano o olho da tigresa voltou a brilhar. Matadora, com o dom de iludir, largadas curtinhas e passadas longas para chegar em todas as bolas, a craque já estava se vendo lá na frente.
Aos 62 anos, Jackie recebeu convite para voltar a jogar entre as melhores da modalidade em Copacabana. Com negociações ainda em andamento, os organizadores do novo evento, o Areia Games, esperam para divulgar o programa oficialmente, mas tudo indica que Jackie e Sandra devem fazer jogo de exibição, dia 8 de março, contra as atuais campeãs olímpicas, Duda e Ana Patrícia. Conquistas separadas por 28 anos, o confronto de gerações na verdade celebra o encontro das únicas duplas femininas brasileiras que triunfaram nas oito edições olímpicas do vôlei de praia. Seja como levantadora na quadra, como desbravadora nas areias e nos costumes, Jackie sempre fugiu do óbvio, portanto, não se trata de mais uma "última dança":
" Estou muito feliz porque voltei a jogar. Nesse mundo em que todo mundo anda tão adoecido, é tão bom poder cair e levantar rápido, poder fazer as coisas básicas " disse a aquariana, que faz 63 anos em 13 de fevereiro. " Sei que ainda consigo render, sinto que posso fazer pela vida toda, cuidando do corpo e da cabeça, porque as pessoas pensam que a cabeça é separada do corpo, mas é uma coisa só.
Duda e Ana Patrícia são responsáveis pelo renascimento de uma força ancestral. No lugar do apego por ter seu feito equiparado, foi com a reconquista do ouro em Paris que Jackie sentiu a luz dourada pulsar novamente no peito. Com o trauma coletivo da pandemia, seguido do confinamento digital e a perda da melhor amiga Isabel Salgado, em 2022, o mar andou virado em frente à rede rosa. Da rotina diária de enfrentar as ondas, lavar a alma e voltar pelo mesmo lugar onde entrou, Jackie experimentou um mergulho diferente, para dentro de si mesma:
" Acho que perdi o olhar para mim mesma, e sinto que não fui só eu, o vôlei brasileiro também perdeu. Agora é o renascimento. Quando senti a possibilidade da conquista da Duda e da Ana, fiz força para estar em Paris, e quando me vi estava de novo no meu lugar.
"Ainda estou aqui", nome do filme de Walter Salles, fez Jackie refletir sobre a luta de todas mulheres, tendo flashes do filme da própria vida. Logo no começo do longa, o sequestro de Rubens Paiva interrompe uma partida de vôlei de praia no Leblon idílico do início dos anos 1970, ali bem perto do espaço e do tempo em que Jackie começava a jogar.
Da protagonista, a viúva Eunice, Jackie leva adiante a vocação para lutar por direitos universais com a cabeça erguida e o sorriso no rosto.
Na segunda metade dos anos 1980, Jackie experimentou um exílio forçado ao bater de frente com o comando maior do esporte olímpico brasileiro:
" Por que não vai pagar para as mulheres? Foi só essa frase que eu disse. Hoje, olhando para trás eu acho que foi bonito, mas me custou muito, me machucou.
reencontro
Diante da determinação da Confederação Brasileira de Voleibol (CBV) de só repassar dinheiro dos patrocinadores ao time masculino, Jackie entrou em quadra para treinar com o uniforme do avesso. Cortada da seleção, sem espaços nos clubes, fez o caminho mais longo: foi desbravar as areias da Califórnia e voltou para ser campeã olímpica ao lado de Sandra, na primeira edição em que o vôlei de praia integrava o programa olímpico. Batizada Jacqueline Louise, chamada de Jacque quando jogava no Brasil, foi dos EUA que trouxe a marca Jackie Silva. Mesmo consagrada no mundo todo, ficou fora das celebrações e dos projetos que se seguiriam na maré cheia até a Rio-2016.
" Não me convidaram para estar presente em nenhum jogo ou evento. Era como se eu não existisse.
A resistência é condição da sua existência. Mesmo acostumada a caminhar pelas próprias pernas, ultimamente ela andou balançada, com desconforto no pé, no cotovelo e nas emoções.
Ainda no vôlei indoor, Jackie corria a quadra toda para fazer o time jogar. Nos últimos tempos, se viu fazendo o mesmo papel na vida afetiva, mas já não era o bastante. Foi na areia que descobriu sua melhor versão, tão capaz de preparar, proteger e fazer pelo outro, quanto de atacar, decidir e brilhar por si.
" Teve um momento que eu senti que eu estava dando tudo o que é meu. Entendo como uma continuidade da campeã ser treinadora, ajudar na evolução das pessoas, mas eu precisava me reencontrar com a jogadora.
Ao se reintegrar com sua vocação, ficou bem consigo mesma por saber que não está sozinha. Em qualquer dimensão entre os céus e as areias, uma parte de Jacqueline se chama Isabel. Colegas de um colégio de freiras em Ipanema nos anos 1970, não couberam por muito tempo no uniforme das boas meninas, com saia sobre o joelho, meia três quartos e camisa social. Filha de um comerciante de roupas que virou estilista, Jackie lembra que a roupa da escola era bonita, bem cortada, mas que elas preferiam ter as pernas livres nas quadras, com a camisa do Flamengo enfiada para dentro do shortinho.
Isabel e Jacqueline se conheceram por volta dos 10 anos. Por volta dos 13, foram expulsas do colégio por indisciplina. Andando entre o pessoal do teatro e do esporte, saíam do Arpoador e chegavam ao ginásio do Flamengo com areia nos pés. Hoje, o vestiário do vôlei feminino rubro-negro leva o nome da dupla.
O bem-te-vi
Desde a adolescência, a transgressão da arte era alimentada pela disciplina e pela repetição dos treinos, e vice-versa. Vencendo qualquer bloqueio, chegaram às Olimpíadas e até à faculdade. Subvertendo a moral, a ordem e a matemática, na conta da dupla a soma de "um mais um" forma o terceiro elemento. Pela ligação química entre elas, para muito além da matéria, Isabel e Jacqueline são inseparáveis:
" A Isabel existe o tempo inteiro, está noutro plano com certeza. Através da Isabel, entendo que a vida é eterna, mas que as pessoas entendam que não é para todo mundo: tem que fazer por onde.
Volta e meia um bem-te-vi entra na quadra, sobrevoa a rede rosa e fica por ali. Jackie sente que é a visita da amiga, a quem chamava apenas de Bel. Do outro lado, era tratada sempre por "minha irmã":
" Eu tinha muita admiração pelo estilo, pela praticidade dela, ia fazendo as coisas sem ficar calculando, impressionante como foi tendo tantos filhos sem prejuízo para a vida de atleta. Ninguém nunca disse que Isabel era a mulher de Fulano ou Beltrano. Isabel era a Isabel.
Isabel gestou quatro filhos e adotou o quinto. Jackie não quis ser mãe, mas acolhe e trabalha pelo desenvolvimento de crianças e adolescentes de todas as origens. Pelo projeto "Atletas Inteligentes", em que o vôlei é incentivo para manter os alunos na escola, Jackie recebeu da Unesco o título de Campeã do Esporte. Com lugar em galeria seleta que tem nomes como Pelé e Michael Schumacher, desce do pedestal, põe o pé na areia e se dedica a reduzir distâncias de uma sociedade tão desigual. Já faz parte do calendário do esporte na cidade o seu Festival Jackie LGBTQIA+ de vôlei de praia:
" Dou aula em comunidades carentes e em escola de elite. Vejo que há fragilidade e potência dos dois lados. O desafio é sair da bolha e juntar todo mundo.
Jacqueline tem seu método próprio como educadora. Certo dia, enquanto os alunos faziam movimentos estabanados num exercício, ela usava o vôlei como filosofia de vida: "Gente, entre a defesa e o ataque tem um intervalo, uma paradinha por menor que seja, para organizar a postura e a respiração. Quem já sair para o ataque antes de terminar a defesa não vai fazer nada direito".
Noutra sessão, um aluno puxava do pé, com uma lesão crônica há meses. "Pé é base, é direção. Para onde você está indo na vida?".
Falando aos outros, mais se revela de si mesma. Jacqueline está novamente na ponta dos cascos para os eventos do verão. Pelos olhos da craque que antevê, ela já está de novo na arena. Passa o filme de uma vida. Chamada à luta, a campeã responde com um sorriso: "Ainda estou aqui".