Retorno de trump traz oportunidades e velhos riscos para os bálcãs
Em poucos lugares a vitória de Donald Trump, em novembro do ano passado, foi tão celebrada ...
Em poucos lugares a vitória de Donald Trump, em novembro do ano passado, foi tão celebrada como dentro do governo da Sérvia. O presidente Alexander Vucic foi um dos primeiros a ligar para o republicano, e aliados, como o líder nacionalista sérvio na Bósnia e Herzegovina, Milorad Dodik, chegaram a usar um boné da campanha trumpista. Trump ainda não fez movimentos sobre os Bálcãs, mas alguns sinais indicam que ações podem estar a caminho.
Uma questão é a possível saída dos EUA da Kfor, a força de paz comandada pela Otan, estabelecida em 1999 após a Guerra do Kosovo, entre a aliança militar liderada pelos americanos e o governo nacionalista sérvio. Pelo mandato estabelecido pela ONU, suas prioridades são a "promoção da paz, segurança, estabilidade e o respeito aos direitos humanos no Kosovo e na região".
Se no período imediatamente pós-guerra seu papel principal era impedir a retomada dos confrontos entre sérvios e kosovares albaneses " o motivo da intervenção da Otan " ao longo dos anos ela passou a atuar como garantidora da segurança, atuando em disputas e repressão a atos de violência.
Os americanos contribuem com 602 militares, mas seu papel também é político: a presença serve como uma espécie de "seguro" para as autoridades kosovares, cuja independência jamais foi reconhecida por Belgrado. Mas, diante dos planos para a redução da presença militar americana na Europa, e de dúvidas sobre o compromisso de Washington com a Otan, a Kfor surge como uma provável baixa.
‘papel fundamental’
Em entrevista ao GLOBO, Dimitar Bechev, diretor do Programa Dahrendorf no Centro de Estudos Europeus, da Universidade de Oxford, disse que uma eventual retirada poderia trazer alguns problemas ao Kosovo, mas há opções para reduzir os danos.
" A maior parte das forças vem da Europa e da Turquia " afirmou. " A UE (União Europeia) juntamente com o Reino Unido, continuará a subscrever a segurança no Kosovo e na Bósnia. Não há espaço para complacência, mas os desafios são muito menores do que na Ucrânia e os recursos necessários não são tão extensos.
Segundo o jornal alemão Bild, a Itália, que hoje tem o maior contingente, estaria pronta para um reforço a curto prazo, e a Turquia, com 325 militares, poderia ajudar suprir a ausência dos americanos. Em nota no mês passado, o comando da Kfor disse que as autoridades americanas "deixaram claro seu compromisso com a Aliança (do Atlântico Norte), incluindo a presença dos EUA na Europa, e que a dissuasão e a defesa da Otan devem continuar fortes".
A permanência dos EUA na Kfor é apenas um capítulo do envolvimento do atual presidente americano com os Bálcãs, e como alguns na região, ao contrário de boa parte da Europa, o veem como solução.
Em 2013, Trump demonstrou interesse em construir um hotel de luxo, uma de suas Trump Towers, nas ruínas do que foi o Ministério da Defesa da Iugoslávia, em Belgrado, bombardeado pela Otan em 1999. O então premier sérvio, Ivica Dacic, chegou a receber o genro de Trump, Jared Kushner, durante as conversas iniciais, e a defender o projeto junto a investidores nos EUA. A iniciativa foi retomada em 2024 após uma longa pausa, e a página oficial do projeto afirma que as vendas devem começar nos próximos meses.
sanções e investimentos
Além de negócios, Trump estabeleceu bons laços políticos com Belgrado, algo creditado à atuação do ex- enviado especial para a Sérvia e Kosovo, Richard Grenell. No passado, ele foi crucial para a assinatura de acordos de normalização econômica entre as duas nações e tentou, sem sucesso, avançar com um plano para troca de territórios envolvendo a região de maioria sérvia no norte do Kosovo e o Vale do Presevo, de maioria albanesa.
A grande questão agora é se Trump, afeito aos grandes acordos, tentará novamente.
" Tudo depende se os Bálcãs entrarão em evidência. O governo está focado em outras questões e regiões no momento " afirma Bechev.
Vucic ainda espera que um governo mais amigável em Washington o ajude a resolver alguns de seus problemas. A começar pelas sanções impostas, ainda sob Joe Biden, à petrolífera estatal NIS, por causa da participação acionária da russa Gazprom. No final do mês passado, os americanos suspenderam temporariamente as medidas.
Mas um ponto segue em aberto: como Trump lidará com a diversificação da economia sérvia, que pende mais ao Oriente do que ao Ocidente?
A China é a principal investidora no país, que integra a Iniciativa Cinturão e Rota, conhecida também como a Nova Rota da Seda, e que é um dos pilares da diplomacia chinesa. Bilhões de dólares foram empregados em obras de infraestrutura, e os dois lados assinaram, em 2023, um acordo de livre comércio.
" Há outros na vizinhança que estão agindo como Vucic, notavelmente Viktor Orbán [premier da Hungria]. Xi visitou Belgrado e Budapeste durante sua turnê europeia em 2024. Dados os laços próximos de Orbán com Trump, Washington provavelmente continuaria a fazer vista grossa" opinou Bechev.
A Rússia também incrementou os investimentos na economia local, além do setor de energia, e Vucic tem um bom diálogo com o Kremlin de Vladimir Putin: na sexta-feira, os dois líderes conversaram por telefone, e o presidente russo prestou apoio ao sérvio, que enfrenta uma grande onda de protestos de oposição.
‘grande sérvia’
Vucic não foi o único a celebrar o retorno de Trump nos Bálcãs, mas um aliado viu no resultado nos EUA uma oportunidade para avançar em seus objetivos. Milorad Dodik, o sancionado presidente da autônoma República Sérvia, uma das duas entidades que compõem a Bósnia e Herzegovina (a outra é a federação croato-bósnia), acredita que a postura de Trump de enfrentar o sistema internacional de regras possa ser um passe livre para seus planos de unificação com a Sérvia. Em 2023, ele disse que, caso Trump vencesse, poderia declarar independência, o que provavelmente seria a fagulha para uma nova guerra de grande porte na região, aos moldes dos conflitos dos anos 1990.
Mas, hoje, há pouco interesse em Belgrado em aventuras expansionistas, e a Casa Branca parece mais interessada em acabar com guerras, não em novos conflitos. Há ainda outros atores interessados na estabilidade, como Kosovo e Albânia " onde os Trump têm investimentos " que gastaram milhões de dólares em lobby em Washington. Hoje, o sonho da "Grande Sérvia" parece mais longe do que Dodik gostaria.