Conferência busca reconhecimento da palestina
A estátua de bronze de Marianne, símbolo do republicanismo francês erguida na Praça da ...
A estátua de bronze de Marianne, símbolo do republicanismo francês erguida na Praça da República, em Paris, é testemunha de milhares de manifestantes que se reúnem há quase dois anos ao redor do seu pedestal, onde foram pintadas a bandeira da Palestina e a frase "Tahia Gaza" ("Viva Gaza", em árabe), para pedir um cessar-fogo na Faixa de Gaza. Na última quarta-feira, dias antes da data em que países ocidentais se comprometeram a reconhecer a Palestina, nesta semana, jovens e adultos portando o keffiyeh (o lenço palestino) nos ombros, no pescoço e nos cabelos e usando bolsas, brincos e broches de melancia (a fruta tem as mesmas cores da bandeira palestina) pediam para que os governos ajam com sanções e embargo de comércio e de armas contra Israel em vez de se restringirem ao ato diplomático do reconhecimento.
adesões aumentam
Hoje, véspera da abertura da Assembleia Geral da ONU em Nova York, acontece na cidade a conferência de dois Estados, organizada por Arábia Saudita e França, a segunda maior economia da zona do euro e detentora de assento permanente no Conselho de Segurança. Desde abril, o presidente francês, Emmanuel Macron, vem fazendo movimentações diplomáticas junto a aliados para convencê-los de que deveriam reconhecer a Palestina. Ontem, Canadá, Reino Unido, Austrália e Portugal fizeram o reconhecimento. França, Luxemburgo, Malta e Bélgica anunciaram que seguirão o mesmo caminho, além outras nações que podem se juntar ao grupo, como Andorra e San Marino.
Depois de quase dois anos da ofensiva israelense em Gaza, que já matou ao menos 65 mil palestinos, a maioria dos quais civis " números do Ministério da Saúde do enclave governado pelo Hamas, aceitos pela ONU como críveis, e que não incluem os milhares ainda embaixo dos escombros " são diversas as razões pelas quais os países decidiram se juntar ao rol de 143 dos 193 membros da ONU que já reconhecem a Palestina. Mas elas podem ser resumidas na pressão que sofrem para agir frente à falta de perspectiva de um fim próximo para a tragédia humanitária no território, onde o conflito está prestes a entrar no terceiro ano.
Na Praça da República, a iniciativa de Macron ganha elogios críticos:
" É um passo indispensável da parte desses Estados, mas não tenho certeza de que vai mudar o cotidiano dos palestinos de imediato " disse ao GLOBO a pediatra franco-tunisiana Imène Dabbak, 30 anos, que acredita que a decisão de reconhecer a Palestina foi tomada pelo presidente francês por questões de política interna. " Ele está em uma posição instável economicamente. Acho que sente que a opinião global está se voltando contra Israel e pensa que este é o momento de estar do "lado certo da História".
O GLOBO apurou junto ao Palácio do Eliseu que o principal motivo para reconhecer a Palestina é que Paris acredita que esta é a única maneira de preservar a solução de dois Estados, além da situação no terreno com a continuação da ofensiva em Gaza, dos objetivos declarados do governo israelense e do ataque de Israel ao Catar. "Este é um momento de mudança", afirmou o Eliseu, que diz também que é uma questão de urgência.
" O reconhecimento do Estado da Palestina é um passo básico para qualquer um que apoie a solução de dois Estados " afirma o ex-conselheiro da equipe de negociação da Autoridade Nacional Palestina Xavier Abu Eid, que vive em Ramallah. " As nações ocidentais se deram conta de que, se quiserem uma solução política baseada em termos internacionais, teriam que reconhecer o Estado da Palestina. [O premier israelense, Benjamin] Netanyahu deixou os países sem nenhuma outra opção a não ser agir, e talvez a coisa mais fácil que eles podem fazer é o reconhecimento.
Dois momentos foram críticos para a decisão, acredita o analista Hugh Lovatt, do Conselho Europeu sobre Relações Internacionais: a decisão de Israel de abandonar o cessar-fogo em janeiro, impor um bloqueio à ajuda humanitária e retomar sua guerra em Gaza; e, também, o recente ataque israelense a Doha, no Catar, onde líderes do braço político do grupo terrorista Hamas se reuniam para debater uma proposta de cessar-fogo do presidente dos EUA, Donald Trump.
" Isso removeu qualquer justificativa que ainda existia para que os governos europeus pudessem interpretar a ação israelense, porque foi visto como negligente e desnecessário para atingir o objetivo israelense de libertar os reféns " afirma Lovatt, referindo-se aos reféns israelenses ainda mantidos em Gaza.
‘um ato moral conta’
A troca de governo dos EUA, com a ascensão de Trump, também mudou a geografia do pensamento europeu.
" Os crimes não pararam de se multiplicar. Os bombardeios se agravaram " afirma o presidente do Instituto do Mundo Árabe e ex-ministro da Cultura da França Jack Lang, próximo de Macron. " Além disso, Trump, aliado direto de Netanyahu, proclamou que queria fazer com que os moradores de Gaza partissem para que ele pudesse construir um resort com seus amigos investidores.
Lang concorda que o reconhecimento formal terá um alcance limitado.
" O reconhecimento não terá consequências práticas imediatas, mas, na vida pública, um ato jurídico, moral e emblemático conta " argumenta. " O que o presidente Macron criou foi uma dinâmica, que gerou a cólera dos dirigentes israelenses.
Israel acusa os países que reconhecem a Palestina de estarem recompensando o Hamas pelos ataques contra o sul do país em 7 de outubro de 2023, que deixaram cerca de 1.200 israelenses mortos e 251 reféns, e deram início à guerra.
Hugh Lovatt, do Conselho Europeu sobre Relações Internacionais, explica que o reconhecimento reafirma o direito do povo palestino à autodeterminação, a um Estado, e seu direito de viver livre da ocupação, além de prover alguns privilégios formais a diplomatas palestinos, como a concessão facilitada de vistos.
" Existe a preocupação de que o reconhecimento ocorra em vez de medidas mais práticas contra Israel. Alguns governos fariam isso, diriam que fizeram algo e seguiriam adiante sem realizar outras ações " afirma Lovatt, que faz uma ressalva: " Agora nós estamos vendo países adotarem medidas ao mesmo tempo, algo que pensei que seria impossível dois anos atrás: europeus propondo medidas no nível nacional, sem passar pelas instituições europeias.
Lovatt destaca que até no nível europeu, medidas antes impensáveis estão sendo tomadas, como a proposta da Comissão Europeia na última quarta-feira para que o bloco suspenda o acordo de comércio preferencial com Israel, sancione dois ministros israelenses de extrema direita e colonos israelenses, além de dez líderes do Hamas. O analista afirma que o bloco também está discutindo banir produtos importados de assentamentos de colonos judeus na Cisjordânia.
‘custo político da inação’
O diplomata e ex-representante da UE para os palestinos Sven Kühn von Burgsdorff acredita que a pressão da opinião pública na Europa pesou.
" Se não houver custos políticos, custos reais para os políticos, eles não vão reagir. Pela primeira vez, existem custos políticos da não ação.
Ele cita a pesquisa feita por uma TV alemã que apontou que 80% do público são contra as ações de Israel em Gaza, e também a demissão do chanceler da Holanda, que deixou o governo por não concordar com sua inação.
" Quatro membros permanentes do Conselho de Segurança terão reconhecido o Estado Palestino, só os EUA não terão, seria uma mudança fundamental, porque até agora foram sobretudo países do Sul Global que reconheceram a Palestina, mas a maior parte dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico não.