‘Netanyahu envia soldados como peões para cometer crimes’
guerra em gaza - 2 ANOS vivi para contar
guerra em gaza - 2 ANOS vivi para contar
"Eu prestei serviço militar há pouco mais de 10 anos e fiquei por três anos na ativa. Era médico de combate e, durante todo esse tempo, uma das coisas mais relevantes que fiz foi vacinar as pessoas contra a Covid-19 durante a pandemia. Eu conto isso porque, do meu lugar nas FDI [Forças Armadas de Israel], vi o tamanho dessa máquina e como ela pode ser usada para fazer coisas boas e também como pode ser usada para fazer coisas ruins. Neste momento, estamos certamente, sem nenhuma dúvida, vendo ela ser sequestrada e usada para coisas muito ruins, tanto para os israelenses quanto para os nossos reféns e para os palestinos que estão sendo brutalizados em Gaza.
Embora eu já fosse muito crítico ao governo, e muito receoso sobre fazer qualquer coisa como militar, em 7 de outubro [de 2023], havia uma ameaça perigosa e imediata. O Hamas massacrou israelenses, e ninguém questionou o que o governo ia nos dizer: era uma questão de agir por necessidade. Tínhamos que nos defender, parar a ameaça e interromper a matança. Eu me apresentei em 7 de outubro e fui enviado para a fronteira norte, com o Líbano.
O que sabíamos naquele dia era que uma força terrorista do Hezbollah estava vindo para massacrar civis, como o Hamas tinha feito no sul. A avaliação era de que nós não seríamos capazes de impedi-los. Com sorte, conseguiríamos atrasá-los, e as unidades que chegariam depois seriam capazes de pará-los. Isso não significa que todos morreriam, mas certamente significava que seria algo sangrento.
guerra de vingança
Felizmente, isso não aconteceu. Felizmente, estávamos na fronteira. Ao longo da guerra, nos foi dito que, quando percebeu o destacamento na fronteira, o Hezbollah recuou. Eu tenho muito orgulho de ter estado lá e ter impedido o que poderia ter sido uma chacina.
Ainda cedo na guerra, eu me tornei vocal ao dizer que não me sentia confortável com o conflito e com o fato de estar sob liderança desse governo. Me parecia óbvio " e eu era parte de uma minoria que falava abertamente " que o governo nos direcionava a uma guerra de vingança, que seria muito sangrenta para nós, para os palestinos em Gaza, e que iria usar o racismo como arma.
Falar abertamente fez com que eu atraísse muito ódio. Eu fiquei na ativa por dois meses, mas fui removido do meu time pelas coisas que disse. Essa era a atmosfera. Quando voltei para casa, eu não sabia como me articular. Era muito assustador assumir um posicionamento e questionar os nossos próprios padrões éticos. Levei uns dez meses até conseguir.
Um ano depois do ataque, publicamos uma carta com as assinaturas de 130 militares que serviram durante a guerra, dizendo que não iríamos retornar ao serviço ativo. Foi uma bomba naquele momento, diferente de tudo que havia acontecido em conflitos recentes.
Fazer uma declaração como essa é muito difícil. Em Israel, o serviço militar é algo que está em um pedestal acima de tudo. Para nós que servimos, é parte central da nossa identidade. Mas quando vimos a direção que estávamos tomando, vimos a maneira imprudente com que o governo lidava com a guerra, dissemos que, como soldados, nosso dever é proteger o povo e o país. E, neste momento, a maior ameaça ao nosso país não é o Hamas, é o nosso governo.
Eu sei por amigos que crimes de guerra estão acontecendo. É importante notar que Benjamin Netanyahu envia soldados como peões para cometer crimes por ele e se recusa a se responsabilizar por isso. Eu não acredito, ou pelo menos eu espero, que a maioria dos soldados não seja responsável por um abuso de poder que é sistemático.
Eu faço parte da organização Soldados pelos Reféns, e somos centenas que tomamos a posição de não fazer parte [da guerra]. Mas isso é algo muito difícil de fazer " e Netanyahu entende isso. Ele tem o luxo de voar para qualquer lugar que o aceite, evitar países que o processariam. Ele tem o luxo de viver a vida que o resto de nós não pode.
ódio e ostracismo
Na Soldados pelos Reféns, a coisa mais significativa que fazemos é ser uma voz. Acreditamos que é mais importante ter um soldado que fale abertamente sobre a recusa do que ter 100 militares que se recusem silenciosamente. Somos o único grupo organizado de soldados que fez isso, mas, dito isso, é muito, muito, muito assustador e opressor para as pessoas se posicionarem publicamente, porque há muita reação negativa que vem com isso. Há muita incitação, muito ódio, o que causa muito ostracismo.
Por enquanto, isso tem permanecido principalmente on-line. Pessoas me mandam mensagens: gente que eu conheço, de quem eu costumava ser amigo. É algo que tem um custo social muito alto.
Nosso objetivo imediato é simplesmente trazer nossos reféns para casa, com um acordo de cessar-fogo que ponha fim à guerra. Entendemos que esta guerra não é boa para ninguém, exceto para Netanyahu."
*Em depoimento a Renato Vasconcelos