Miércoles, 02 de Julio de 2025

Bebelplatz

BrasilO Globo, Brasil 12 de septiembre de 2019

Cora Rónai

Cora Rónai
Eu ia começar essa coluna contando que, um dia, eu ia andando distraída por Berlim. Escrevi só isso, "eu ia andando distraída por Berlim" " e aí me dei conta do quanto essa frase pode ser besta, "eu ia andando distraída por Berlim" , como se isso fizesse parte do meu cotidiano, como se andar distraída por uma das grandes capitais do mundo me acontecesse sempre.
Acontece mais do que eu jamais teria sonhado ser possível, quando criança, mas bem menos do que eu gostaria e, certamente, muito menos do que uma frase assim pode levar a crer. O problema é que não tenho outra maneira de falar sobre o que aconteceu a não ser como aconteceu; eu ia mesmo distraída por Berlim. Não era a minha primeira visita, e eu já conhecia a cidade o suficiente para me dar ao luxo de andar distraída.
Não havia muito movimento à minha volta mas, um pouco à frente, um grupo de pessoas estava parado, olhando fixamente para o chão. Não havia nada demais ali, ou pelo menos nada que se visse de onde eu me encontrava, de modo que fui conferir do que se tratava.
As pessoas estavam paradas em torno de um espaço subterrâneo coberto por um bloco de vidro que se incorporava ao calçamento. Lá embaixo, numa sala branca e muito profunda, uma série de estantes vazias, todas brancas também, como o fantasma de uma biblioteca desaparecida.
Senti um arrepio na espinha no instante em que me dei conta de que estava em Bebelplatz, e de que aquele era um monumento fúnebre, a lembrança dos 20 mil livros que, numa noite infame de 1933, arderam naquele mesmo lugar, queimados pelos estudantes universitários que deveriam ter sido os primeiros a protegê-los.
O espaço das estantes havia sido calculado de acordo com o espaço que os livros teriam ocupado em vida.
Duas placas de bronze, também parte do calçamento, explicavam o que acontecera ali, e traziam versos de Heinrich Heine: "Aquilo foi apenas um prelúdio; onde se queimam livros, pessoas acabarão sendo queimadas também". Isso foi escrito em 1820, mas ninguém prestou atenção ao vaticínio até que ele se cumprisse.
Eu me lembrei daquele dia em Berlim ao ler a coluna do meu amigo Arnaldo Bloch, que escreveu sobre a queima dos livros. E me lembrei, também, porque o impacto daquele monumento, criado pelo israelense Micha Ullman, nunca me abandonou; ele é uma lembrança recorrente, uma das interpretações artísticas mais eloquentes de uma época em que a estupidez triunfou para além do que habitualmente triunfa.
O que aconteceu na Bienal do Livro no fim de semana seria bastante grave em qualquer momento, porque não é da alçada dos prefeitos recolher livros. Mas o que seria apenas motivo de ridículo em outras circunstâncias ganha uma dimensão sinistra no contexto que estamos vivendo, em que arte, ciência e cultura vêm sendo consideradas armas ideológicas a serem destruídas.
Cabe a quem dá valor à liberdade de expressão reagir enquanto é tempo: direita, esquerda, centro, muito antes pelo contrário " essa não é uma luta entre pontos de vista políticos.
(E nós aqui, inocentes, achando que a civilização já tinha vencido.)
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