Jovens ‘cancelam’ diversão digital e buscam hobbies analógicos
O intervalo das aulas da estudante Luiza São Thiago, de 17 anos, ganhou novas cores nos ...
O intervalo das aulas da estudante Luiza São Thiago, de 17 anos, ganhou novas cores nos últimos anos: ela e as amigas passam o recreio trocando novelos de linha enquanto fazem bonequinhos de crochê. Pode parecer um retrato do passado, mas a brincadeira das meninas reflete um movimento de adolescentes e jovens adultos em busca de hobbies analógicos para reduzir o tempo diante das telas. Em vez de tablet, celular e videogame, passatempos como palavras cruzadas, tricô, cerâmica e crochê ganham espaço na rotina dos hiperconectados. E as empresas estão de olho nisso.
Um levantamento da Shopee, a pedido do GLOBO, mostra que no último trimestre de 2024, na comparação com o mesmo período do ano anterior, as buscas por itens relacionados à prática de crochê, por exemplo, saltaram 600% no público de até 17 anos. Já nos produtos específicos para amigurumi " técnica japonesa para criar pequenos bonecos de crochê ou tricô " o crescimento foi de 200% entre os adolescentes.
Outros hobbies também têm atraído consumidores mais jovens. A procura de produtos para cerâmica aumentou 270%, enquanto tintas, pincéis e outros itens para pintura subiu 500% entre consumidores de até 17 anos.
Luiza começou a fazer crochê há três anos, quando viu um kit de amigurumi num armarinho e se interessou. De lá para cá, já são vários bonequinhos feitos à mão, principalmente animais, como dinossauros, ursos e coelhos, além de bonecas que ela deu de presente para amigos.
" O crochê me ajuda na concentração. Levo para escola, casa da minha avó, natação. Uso para "fugir" de tudo e ocupo um tempo que ficaria no celular. Até me ajuda a socializar, porque sempre que faço na rua alguém me para achando interessante e puxa assunto " conta a adolescente.
No mercado, a busca pelo "fazer com as próprias mãos" cresce inclusive em torno de técnicas que levam tempo e exigem paciência até o resultado final, como a pintura e a cerâmica " neste último caso, uma peça pode levar até 20 dias para ficar pronta.
" São cada vez mais adolescentes nas aulas, principalmente durante as férias. Há um incentivo dos pais em desconectar, ter atividades em grupo e fora das telas, e eles aproveitam para fazer peças modernas, da moda " conta Marizete Menezes, gerente da Caçula, tradicional rede de papelaria, aviamentos e armarinhos do Rio, que também promove oficinas de diferentes técnicas.
JOVENS COM MÃO NA ARGILA
A ceramista Débora Mello tem visto aumentar o número de alunas mais jovens nas oficinas do ateliê que tem na Tijuca, Zona Norte do Rio: 80% delas têm menos de 30 anos, e a primeira adolescente, de 16, começou as aulas regulares ontem.
" Costumo perguntar o objetivo de cada uma, e a maioria sempre fala de uma necessidade em aprender uma arte manual para desconectar e fazer amizades. E a cerâmica acaba sendo uma boa opção, porque durante a produção é inviável mexer no celular por causa da argila " brinca.
Na Círculo, que fabrica linhas e aviamentos, consumidores de mais de 40 anos eram maioria, mas, na última década, perderam espaço para os que estão na casa dos 20 anos. A produção média mensal no período saltou de 340 para 650 toneladas.
Com a mudança no perfil dos consumidores, a empresa correu para mudar estratégias e atualizar o portfólio. Para este mês está previsto o lançamento de uma linha de amigurumis da Hello Kitty, no primeiro acordo de licenciamento da empresa, que completa 87 anos em 2025.
" O público mais velho aceita mais o que as empresas lançam, mas os mais jovens exigem mais, e temos que acompanhar as demandas e tendências. No ano passado, por exemplo, a paleta de linhas para amigurumi saiu de 60 para 100 cores " detalha o CEO Osni de Oliveira Junior.
Já na Linhas Corrente a aposta foi o licenciamento da marca Harry Potter, da Warner. Lara Mascarenhas, diretora de Marketing da companhia, diz que a percepção da entrada dos consumidores da geração Z e Alpha (nativos digitais) acontece principalmente nas redes e site da marca, onde ficam as receitas da produção.
Esse passo a passo das peças, antes disponibilizado apenas nas revistas de costura, agora são também digitalizados e estão até em formato de vídeo.
" Antes, para uma peça listrada, era preciso parar o crochê ou tricô, mudar de cor e conectar a costura. Mas os mais jovens querem mais agilidade, então criamos o fio Smart, que já vem com as duas cores e torna a produção quatro vezes mais rápida " exemplifica.
Na rotina de Manuela Pacheco, de 15 anos, as palavras cruzadas são as preferidas.
" Meus pais sempre me encorajaram a ter passatempos analógicos, como ler, desenhar, pintar. Não tenho rede social e demorei pra ter celular. Acho que acabo desconectando da vida das outras pessoas, não sei o que elas estão fazendo toda hora. Tenho mais tempo para fazer as minhas coisas " analisa.
Editora da Coquetel, principal marca do país de passatempos como palavras cruzadas e sudoku, Eliana Machado diz que a empresa começou a perceber mudanças no perfil dos leitores pelas redes sociais. É que as cruzadas acabam "viralizando" quando a produção inclui nos enigmas nomes de personalidades, como o apresentador Fábio Porchat, a jornalista Andréia Sadi e o humorista Rafael Chalub.
A faixa a partir dos 20 anos é a que mais cresce entre o público das revistas, e a marca tenta se aproximar ainda mais destes jovens adultos: até parceria com festas, como a sugestiva Jovens Idosos, no Rio, já aconteceu, com um painel de caça-palavras impresso na pista de dança.
" Percebemos uma retomada do hábito por pessoas mais jovens e tentamos sempre rejuvenescer a produção, com referências atuais nos jogos " diz Eliana.
Uma pesquisa do grupo Alexandria, consultoria de estratégia de mercado, ouviu no ano passado cerca de mil crianças, pais e educadores, e identificou que, como consequência de uma vida hiperconectada e com tantas atividades, 69% das crianças alegam estar estressadas.
SOBREcARGA MENTAL
Professora de psicologia da PUC-Rio, Katia Nahum explica que o uso excessivo de dispositivos digitais, especialmente as redes sociais, tem sido associado a uma sobrecarga mental e emocional, com riscos de potencializar sintomas de ansiedade, estresse e depressão entre jovens.
Ela diz que atividades analógicas permitem um tipo diferente de engajamento, mais contemplativo e menos acelerado, podem ajudar a reduzir os níveis de estresse e ansiedade e até estimular o cérebro de forma diferente do consumo passivo do conteúdo digital:
" Principalmente no grupo de jovens adultos, a busca pelos passatempos analógicos é como uma necessidade crescente de equilibrar o uso da tecnologia com momentos de desconexão. Reflete a busca por uma vida mais plena e focada no presente, longe da aceleração e sobrecarga das plataformas digitais.