‘A bola não está do nosso lado’, diz lavrov sobre negociação com ucrânia
Entrevista
Entrevista
Os ministros das Relações Exteriores do Brics se reunirão hoje e amanhã no Rio para preparar o encontro de presidentes, em julho. Um dos que estarão presentes é o chanceler russo, Serguei Lavrov. Em entrevista ao GLOBO, o ministro do governo de Vladimir Putin diz apoiar propostas da presidência brasileira do Brics, como a ampliação do Conselho de Segurança da ONU, e, sobre a guerra entre seu país e a Ucrânia, acusa Kiev de se retirar da mesa de negociações. As conversas com o governo de Donald Trump, disse Lavrov, foram positivas: "Esperamos que isso os ajude no diálogo com Kiev e com países europeus individuais." A seguir, os principais trechos da entrevista, feita por e-mail.
O Brasil defende a expansão do Conselho de Segurança da ONU. Qual é a posição da Rússia sobre isso? Apoiaria a inclusão do Brasil?
A Rússia acredita na necessidade de uma reforma bem pensada do Conselho de Segurança como um dos principais órgãos da ONU, que, de acordo com sua Carta, tem a responsabilidade primária de manter a paz e a segurança internacionais. É absolutamente claro para nós que a formação de uma ordem mundial multipolar pressupõe uma expansão da representação no Conselho de Segurança da ONU do Sul e do Leste Global " isto é, os países da Ásia, África e América Latina. Consideramos o Brasil, que realiza uma política externa independente e é capaz de fazer uma contribuição significativa para a solução de problemas internacionais, um candidato digno para ser membro permanente. Apoiamos também a candidatura da Índia, simultaneamente com uma decisão positiva sobre a representação do continente africano no Conselho. Aproveitando a oportunidade, gostaria de enfatizar que somos contra a concessão de assentos adicionais aos países ocidentais e seus aliados " já há muitos deles no Conselho de Segurança. Não estamos prontos para apoiar as candidaturas da Alemanha e do Japão devido ao renascimento da ideologia do militarismo nesses países e suas políticas abertamente hostis em relação à Rússia.
Durante uma reunião sobre planejamento de política externa dos países do Brics, a delegação russa mencionou discussões com os EUA sobre o conflito na Ucrânia. Que possibilidades o senhor vê para que essas conversas levem a negociações entre Rússia e Ucrânia para acabar com o conflito?
Em contatos com representantes do governo dos EUA, falamos em detalhes sobre as causas e as raízes da crise ucraniana. Explicamos a nossa visão dos parâmetros para sua solução final, levando em consideração os interesses legítimos da Rússia, principalmente na área de segurança e garantia dos direitos humanos. Nossa impressão é que nossos interlocutores americanos começaram a entender melhor a posição da Rússia sobre a situação na Ucrânia. Esperamos que isso os ajude no diálogo com Kiev e com países europeus individuais. O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, informou-me no mesmo dia sobre esse contato em Paris de 17 de abril. Ele garantiu que as discussões foram conduzidas em linha com as consultas anteriores entre Moscou e Washington.
Continuamos abertos às negociações. Mas a bola não está do nosso lado. Até agora, Kiev não demonstrou sua capacidade de negociação. Então, como se pode explicar o fato de que as Forças Armadas ucranianas não foram capazes de observar nem a moratória de 30 dias sobre ataques a instalações energéticas (18 de março a 17 de abril) nem a trégua de Páscoa de 30 horas (das 18h de 19 de abril à 0h de 21 de abril)? O regime de Volodymyr Zelensky demonstrou falta de vontade política para a paz e relutância em abandonar a continuação da guerra, o que é apoiado por círculos russofóbicos em vários países da União Europeia (UE), principalmente França e Alemanha, bem como na Grã-Bretanha.
A ideia de criação de uma moeda do Brics ainda é uma perspectiva distante?
Recentemente, a desdolarização se tornou uma das principais tendências no desenvolvimento da economia mundial. Isso se deve à falta de confiança nos mecanismos financeiros internacionais controlados pelo Ocidente. É prematuro falar sobre a transição do Brics para uma moeda única. Nossos esforços conjuntos visam criar uma infraestrutura de pagamento e liquidação para transações transfronteiriças entre os países do Brics. Em particular, estamos falando sobre o uso mais ativo das moedas nacionais. Poderemos voltar à questão de uma moeda comum ou unidade de conta para o Brics quando surgirem as condições financeiras e econômicas necessárias para isso.
O senhor acha que outros países poderiam ser incluídos em futuras negociações de paz, como o Brasil, que mantém diálogo com ambos os lados?
A Rússia aprecia o desejo dos nossos parceiros de contribuir para a criação de condições para uma solução pacífica da crise ucraniana. Mais de 20 países e diversas organizações regionais da América Latina, Ásia e África apresentaram iniciativas semelhantes. O Brasil estava entre eles. Em janeiro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentou a ideia de criar um formato de negociação multilateral. Pode-se dizer que isso se refletiu na iniciativa brasileiro-chinesa de estabelecer o "Grupo de Amigos da Paz na Ucrânia" na ONU. Suas atividades gradualmente ganham força. Foram realizadas três reuniões dessa plataforma. Há razões para crer que o grupo tem chance de se tornar um clube respeitado de países do Sul e do Leste Global. É importante que todos os membros do Grupo de Amigos levem em consideração as causas centrais da crise e sejam guiados pelos princípios da Carta da ONU em sua totalidade e inter-relação. O princípio da soberania e da integridade territorial dos Estados não pode ser considerado isoladamente do direito dos povos à autodeterminação e à proteção dos direitos humanos, independentemente de idioma, raça, gênero e religião.
Quais condições seriam necessárias para a Rússia hoje para sentar-se à mesa e negociar com a Ucrânia?
Já respondi parcialmente a esta pergunta. Foi Kiev que se retirou do processo de negociação em abril de 2022. E ele fez isso a pedido de seus curadores ocidentais. Então, em setembro do mesmo ano, Volodymyr Zelensky introduziu uma proibição legislativa às negociações com a Rússia. Ainda está em vigor. Para retomá-las, será necessário cancelá-la. Em uma entrevista recente à CBS News, Zelensky mais uma vez se manifestou contra as negociações com o nosso país. Permitam-me citar as palavras dele: "Não podemos confiar na Rússia. Não podemos confiar nas negociações com a Rússia." Nossa posição sobre o acordo é bem conhecida. Partimos do fato de que a não adesão de Kiev à Otan e confirmação de seu status neutro e não alinhado, de acordo com a Declaração de Soberania Estatal da Ucrânia de 1990, é um dos dois pilares para uma solução final da crise ucraniana que atenda aos interesses de segurança da Rússia.
A segunda é superar as consequências do regime neonazista em Kiev, formado como resultado do golpe de fevereiro de 2014, incluindo suas ações para exterminar legislativa e fisicamente tudo o que é russo " língua, mídia, cultura, tradições e a ortodoxia canônica. O reconhecimento internacional da propriedade russa da Crimeia, Sevastopol, República Popular de Donetsk, República Popular de Lugansk, região de Kherson e Zaporíjia é imperativo. Todos os compromissos de Kiev devem ser legalmente garantidos, ter mecanismos de execução e ser permanentes. Estão na agenda as tarefas de desmilitarização e desnazificação da Ucrânia, o levantamento de sanções, ações judiciais e mandados de prisão e a devolução de ativos russos "congelados" no Ocidente. Também buscaremos garantias confiáveis de segurança da Federação da Rússia contra as ameaças criadas pelas atividades hostis da Otan, da UE e dos seus estados membros individuais nas nossas fronteiras ocidentais.
Serguei Lavrov/ CHANCELER