Com cortes de geração, empresas de energia solar e eólica adiam projetos
sobrecarga no sistema
sobrecarga no sistema
Parada obrigatória
O aumento exponencial da geração de energia solar e eólica nos últimos anos levou o Brasil a uma situação inusitada: o Operador Nacional do Sistema (ONS) tem determinado cortes forçados nessa geração limpa para não sobrecarregar o sistema, os chamados curtailments. Isso ocorre porque a oferta de energia tem superado a demanda do país, e o desequilíbrio gera risco ao Sistema Interligado Nacional (SIN). Questões técnicas impedem "desligar" termelétricas e hidrelétricas imediatamente " por isso, o corte recai sobre a fontes solar e eólica.
Neste ano, o corte obrigatório de geração chegou a 18,5% do total das duas fontes, aponta levantamento da consultoria Volt Robotics, provocando prejuízos que já levam empresas a suspender investimentos. Foram 4,3 mil GWh que deixaram de ser gerados, volume 230% superior ao montante de redução forçada de todo o ano de 2024 e equivalente ao consumo mensal do Paraná.
Relatório do Itaú BBA estimou que os cortes chegaram a 26,4% da geração de eólicas e solares só em agosto e cresceram 85% ante a igual mês de 2024 e 20% em relação a julho deste ano. Cálculo similar foi feito pelo BTG Pactual.
As associações de geradores eólicos e solares, Absolar e Abeeólica, dizem que as perdas financeiras decorrentes dos cortes cresceram 36% desde o ano passado e chegam a R$ 6,6 bilhões só em 2024 e 2025. Os prejuízos subiram quase 40% neste ano em relação a 2024: R$ 3,8 bilhões até setembro, calcula a Absolar.
Especialistas dizem que os curtailments tendem a aumentar " já que empresas indicam nível elevado de interrupções em setembro " e devem continuar ao menos até 2035. Os cortes viraram um fator de incerteza. Companhias já buscam renegociar financiamentos de projetos, acendendo um sinal amarelo entre instituições financeiras. Fábio Bortoluzo, líder no Brasil da Atlas, que desenvolve projetos solares no país, diz que R$ 30 bilhões em novos projetos podem não sair do papel.
" Nos piores casos, temos visto cancelamentos de alguns projetos " completa Francisco da Silva, diretor da Abeeólica. " Os empreendedores, que muitas vezes já haviam se mobilizado, até mesmo feito algumas audiências públicas nos locais onde iam realizar obras de parques eólicos, estão sendo orientados pelas matrizes dessas empresas a cancelar os contratos porque se tornaram extremamente caros.
Rodrigo Sauaia, presidente da Absolar, diz que conjuntos solares com menos de um ano de operação chegam a enfrentar cortes de 70% de sua geração, comprometendo contratos com clientes e fornecedores e financiamentos de longo prazo com bancos. Donato Filho, diretor-geral da Volt, diz que os cortes se concentram em Minas, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte.
Agentes do setor pressionam governo e Congresso por soluções, que passam por expansão de linhas de transmissão e leilões de armazenamento de energia em baterias, mas também envolvem ressarcimentos que podem terminar nos encargos das contas de luz dos consumidores.
para evitar apagões
Os cortes de geração são feitos em tempo real pelo Operador Nacional do Sistema (ONS) para evitar sobrecarga no Sistema Interligado Nacional (SIN). Passaram a ser mais frequentes a partir do apagão de agosto de 2023, quando 25 estados e o Distrito Federal ficaram sem energia com uma pane provocada por um pico de geração solar. Quando são "desligadas", usinas eólicas e solares são obrigadas a comprar energia no mercado livre para cumprir seus contratos de fornecimento a clientes, gerando prejuízos.
Interrupções são mais frequentes entre 9h e 16h, quando há maior intensidade solar, mas variam conforme a demanda de eletricidade. Nos fins de semana os cortes de geração dobram, com o menor consumo de indústria e comércio aumentando o desequilíbrio no SIN. No Dia dos Pais, em 10 de agosto, os cortes chegaram a 98,5% da capacidade de algumas usinas. O impacto é direto no caixa das geradoras, diz Bortoluzo:
" Os investimentos estão freando bruscamente. A eólica praticamente não terá mais expansão. Depois de 2027, a solar não deve crescer muito. O impacto vai além. Veremos energia mais cara nos próximos anos, pois a ampliação vai ocorrer com base em fontes mais caras e poluentes.
Rubens Brandt, CEO do Grupo Energia, que atua em geração, transmissão e distribuição, observa que os cortes vêm num momento de juros altos e desaceleração da economia, o que tende a baixar o consumo de energia. Ele conta que o grupo suspendeu R$ 4,6 bilhões em investimentos na construção de um parque solar na Bahia, o Projeto Apia, e adiou de 2027 para 2029 um outro, tocado em parceria com outra empresa.
" O projeto Apia não vai mais existir. Já era. Não dá para dizer que cortes não iriam acontecer, mas não nessa proporção nem com esse horizonte para ter esse problema resolvido " diz Brandt, acrescentando que o curtailment afasta também empresas consumidoras que planejavam investir em geração própria.
Para Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), os cortes seguirão até 2035. Lívia Fiuza, diretora-geral da Lightsource BP no Brasil, estima que vão aumentar, ficando na casa dos 30% até 2029.
Roberto Colindres, CEO da Rio Energy, subsidiária da petroleira norueguesa Equinor para energia limpa no Brasil, lembra o crescimento muito forte das fontes renováveis no país em poucos anos. Para ele, agora o curtailment impõe uma revisão nos planos da empresa, que adiou um projeto solar de 400 MW na Bahia.
" A questão é a previsibilidade. Quando propomos um investimento, estamos falando de bilhões de reais e, no mínimo, 30 anos. E o curtailment se tornou uma premissa-chave. Nos últimos meses, tivemos interrupções de 25% e, em alguns momentos, isso chegou a 50%. Você não sabe qual será a sua receita " queixa-se. " Queremos investir, mas o ambiente é desafiador. Hoje, somos forçados a vender menos energia, porque não sabemos se vamos gerar ou não. Temos de lidar com isso a preço de mercado. Se houver um corte alto, temos que ir ao mercado (comprar energia) para cumprir o contrato.
Clientes em alerta
Empresas que compram energia de parques eólicos e solares, como Gerdau, Votorantim Cimentos, Albras e Dow Química têm expressado preocupações com o custo futuro dessa fatura em reuniões com as geradoras, apontam executivos do setor. As companhias preferiram não comentar. Estevão Franco, gerente de Energias Renováveis da ArcelorMittal Aços Longos, outra citada, teme que os curtailments afetem contratos e tarifas.
Um agravante da questão é o aumento da micro e minigeração distribuída, com os incentivos para placas fotovoltaicas nos telhados, que ficam fora do alcance do corte do ONS e dificultam o equilíbrio do SIN, diz Roberto Fontoura Filho, especialista em energia e professor da Uerj. Edvaldo Santana vê risco de o custo dos cortes ficar para o consumidor:
" Por enquanto, o investidor dos parques centralizados está absorvendo perdas e reclamando ao governo. Já houve pedidos à Aneel para que o custo seja repassado aos consumidores, mas até agora esses pleitos não foram acolhidos.
A Abradee, que reúne distribuidoras de energia, teme uma solução nessa linha, diz Ricardo Brandão, diretor de Regulação da entidade:
" É o risco, quando vemos a discussão na Aneel. A tarifa já é alta, e novos aumentos vão reduzir a competitividade de toda a economia.
Na sexta-feira, a Aneel reuniu o ONS e distribuidoras de energia para discutir soluções. A agência informou que não há definição sobre o tema, alvo de uma consulta pública. Recebeu recurso para que os custo dos cortes fossem repassados aos encargos das contas de luz, mas o pleito foi negado.
O ONS afirmou que "não prioriza uma ou outra fonte específica para definir a restrição de geração. As decisões operativas são sempre pautadas pela segurança do SIN e pela garantia do atendimento à demanda de energia em todo o país". O Ministério de Minas e Energia disse que criou um grupo de trabalho em março para elaborar diagnósticos e soluções para o problema.