‘A casa da minha irmã foi bombardeada três vezes’
vivi para contar
vivi para contar
"Meu nome é Ahmed Alshaib, tenho 37 anos. Sou engenheiro civil e tinha o sonho de morar no Brasil. Meu pai e minha mãe são palestinos, e passei a vida entre a Arábia Saudita, onde nasci, e a Faixa de Gaza. Sou cidadão palestino e meus pais saíram do enclave por conta das guerras, para preparar um futuro melhor para os filhos. Mas vivi muito tempo entre os dois lugares, minha mãe sempre me levava para lá para conhecer e visitar a família. Somos 12 irmãos, seis meninos e seis meninas. Meu pai morreu. Ele era empreiteiro; minha mãe, hoje com 75 anos, sempre foi dona de casa.
Meu irmão já morava no Brasil há 17 anos quando vim para o país, em 2018. Vim morar direto em Florianópolis, em Santa Catarina. Ele me disse que era um bom lugar para viver. O povo brasileiro me acolheu muito bem. Todos os lugares do mundo têm problemas, mas, quando cheguei aqui, vi um paraíso. Hoje sou corretor de imóveis, avaliador de imóveis, perito judicial e federal, engenheiro, faço de tudo.
semanas sem comer
Em 2024, alguns meses depois do início de mais um conflito em Gaza (em outubro de 2023), um casal de sobrinhos conseguiu vir para o Brasil. Eles ficaram quatro meses no Egito, enquanto tentavam o visto de reunião familiar na Embaixada do Brasil no Cairo, e conseguiram. Minha sobrinha veio grávida para cá, e tiveram no Brasil uma menina, que hoje tem 1 ano. Eles dois são arquitetos, a filha deles está na escola, estão vivendo muito bem por aqui, aprendendo português e querendo revalidar o diploma " hoje trabalham de forma on-line. E sempre que precisam, também os ajudo.
Mas ainda temos mais de 20 familiares em Gaza. Há alguns meses, por meio de uma ativista, conheci alguns advogados que trabalham de forma gratuita, que estão nos ajudando. Eles tentam obter para mais de 250 pessoas o visto de reunião familiar, para quem está no Brasil e tem parentes na guerra. São pessoas que moram no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo…
A Cidade de Gaza está completamente destruída, virou um deserto, não tem nada, é só pó. O que conseguimos ver nas redes sociais é só 1% do que está acontecendo. As pessoas ficam duas semanas sem comida, crianças morrem de fome, não há nada o que fazer em caso de doença.
Antes, conseguia contato com minha família uma vez a cada 15 dias, mas agora estou há mais de um mês sem saber como estão. Já perdi quase dez parentes nessa guerra... tios, primos, tias, o que eu vou fazer? Na nossa religião islâmica, quando acontece uma guerra, aqueles que morrem defendendo a terra dentro do conflito são mártires e podem entrar no paraíso direto. Espero que Deus os tenha escolhido para entrar no paraíso.
Na Palestina, boa parte dos meus parentes tem curso superior: são farmacêuticos, arquitetos, professores, engenheiros, médicos, viviam bem. Duas das minhas irmãs são gêmeas, de 48 anos, e a casa de uma delas foi bombardeada três vezes. Hoje meus familiares moram em um terreno, em uma tenda. Uma irmã dorme no chão, só tem um travesseiro. As pessoas morrem na rua, e ninguém consegue enterrar, eles têm medo de ir aos locais que entregam comida e de o Exército israelense os matar. Todo dia tenho medo de chegar a notícia de que alguém morreu, de que a minha irmã mais velha morreu. Quero salvar quem ainda está vivo.
documentos parados
Queremos ajuda do Ministério de Relações Exteriores, uma porta para trazer essas pessoas. Estou tentando visto de reunificação familiar para os nossos parentes, mas os documentos estão parados há quase um mês, minha família ainda não foi escolhida para sair. O governo Lula ficou do lado da Palestina, conseguiu resgatar as pessoas no início da guerra. Acho que ele (presidente) ainda está tentando, falou muito que queria ajudar. Mas a gente não tem resposta.
Quando eles chegarem ao Brasil, se precisar, dormimos todo mundo em um quarto, comemos todo mundo no mesmo prato. Vai ser melhor do que lá, melhor do que não ter comida."
*Em depoimento ao repórter Guilherme Queiroz