Aeroclubes vivem onda de despejo após concessões de aeroportos
Turbulência no setor
Turbulência no setor
O setor aéreo está aquecido no Brasil: em setembro foram 8,5 milhões de passageiros, o melhor resultado desde janeiro de 2000, segundo o governo federal. O número de licenças emitidas para pilotos de companhias aéreas atingiu este ano o maior patamar desde 1970, mostram dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Nas cabines, porém, o clima para parte da categoria não é de festa. O longo caminho que os pilotos percorrem até estarem habilitados a comandar uma aeronave comercial começa nas escolas de aviação " e muitas estão ameaçadas por uma onda de despejos imobiliários.
Os aeroclubes, instituições sem fins lucrativos, multiplicaram-se na década de 1940, graças a uma campanha do magnata da mídia Assis Chateaubriand e do então ministro da Aeronáutica, Salgado Filho. Hoje há 87 em funcionamento, conforme a Anac, o que representa 33% dos 258 centros de instrução de aviação civil no país. No século passado, segundo fontes do setor, havia ao menos o dobro, e o número cai ano a ano.
Desde 2016, segundo levantamento feito por uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) que vai debater o tema, ao menos 38 aeroclubes enfrentaram problemas; destes, 16 fecharam as portas.
Esse processo é concomitante à concessão de aeroportos regionais, que costumam abrigar essas instituições, à iniciativa privada. Mas isso também ocorreu em terminais geridos pela estatal Infraero.
É o caso do Aeroclube de São Paulo, fundado em 1931, que funciona no Aeroporto Campo de Marte, na Zona Norte da capital paulista. Segundo mais antigo em operação no país, ele enfrenta uma disputa na Justiça com a concessionária Pax Aeroportos, que assumiu o terminal em 2023, e pode ser despejado.
Audiência pública dia 13
Outro fator por trás dos despejos são as mudanças em regras da Anac que garantiam isenções para os aeroclubes. Em 2018, uma regulamentação derrubou uma portaria de 1977 que garantia a gratuidade para os aeroclubes funcionarem em aeroportos públicos. A agência diz que a mudança "promoveu maior isonomia entre os diversos agentes que atuam no âmbito da infraestrutura aeroportuária."
Como reação, o setor vai realizar uma audiência pública na Alesp em novembro sobre o tema. Além disso, um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, de 2021, quer retomar a gratuidade nos espaços da União. O texto foi aprovado na Comissão de Viação e Transportes em 2024 e agora está na Comissão de Constituição e Justiça, onde aguarda escolha de relator.
Após o fim da isenção, as ações judiciais se multiplicaram. No caso do Aeroclube de São Paulo, ocorreu depois de o contrato com a Pax, que era anterior à concessão, terminar, em julho.
" Começamos a negociar com a Pax. Pagávamos com dificuldade R$ 43 mil de aluguel. Disseram que tinham interesse em nos manter e que o aluguel seria de R$ 60 mil, depois, passou para R$ 90 mil, R$ 130 mil, R$ 160 mil... Chegou um momento que encerraram a negociação e disseram que não tinham mais interesse " afirma Luiz Antônio de Oliveira, presidente da entidade.
Ações tanto por parte do Aeroclube, que tenta permanecer no local, quanto da Pax estão em andamento na Justiça. A concessionária pede a reintegração de posse do espaço e informa, em nota, que o contrato do Aeroclube chegou ao fim "após tentativas de negociação sem êxito" e que "a atual ocupação do espaço é considerada irregular." A Pax ressalta que "outras escolas de aviação continuam em plena operação" no Campo de Marte.
Marília, a 400 quilômetros da capital paulista, vive situação parecida. O aeroporto da cidade é administrado desde 2022 pela Rede Voa. O contrato que autorizava a permanência do aeroclube venceu em 2024. A negociação não prosperou, e uma ação judicial solicitou o despejo. A disputa chegou ao legislativo, com a instituição de ensino sendo tombada como patrimônio cultural pela Câmara de Vereadores da cidade em março. Procurada, a Voa não comentou.
" Estamos nesse litígio há mais de um ano. Estamos conseguindo sobreviver juridicamente " diz Jolando Gatto, diretor de segurança e instrutor do aeroclube de Marília.
Membros da escola, em conjunto com o deputado estadual Tenente Coimbra (PL), encabeçam a organização da audiência pública que será realizada na Alesp no próximo dia 13, com a participação de mais de 70 escolas de todo o país. Levantamento do grupo mostra que o estado tem 47 aeroclubes em funcionamento, que formam cerca de 830 pilotos por ano e têm 3,5 mil sócios.
Falta estratégia federal
As concessões de aeroportos começaram em 2011 e foram aceleradas pela Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, diz Derick de Mendonça Rocha, advogado especialista em infraestrutura do escritório Manesco Advogados. Desde 2019, o governo federal aposta em um modelo que junta "o bife com o osso", unindo no mesmo contrato aeroportos de grande fluxo com regionais, menos rentáveis. Foi o caso de Congonhas, cuja concessão uniu ativos menores de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Pará.
" A ausência de taxas para aeroclubes vinha causando alguma distorção. Os aeroclubes tinham uma operação abrangente, funcionando também como hangar, posto de combustível, mecânica " afirma Rocha.
Mas essa disputa também ocorre em terminais administrados pela Infraero, como o Aeroporto de Flores, em Manaus (AM), e o Brigadeiro Araripe Macedo, em Luziânia (GO), onde estão os aeroclubes do Amazonas e de Brasília.
" Os hangares, quem construiu foi o aeroclube, desde 1940. Eles nos sustentavam, a gente alugava " diz Fernando Lúcio, que era gestor do Aeroporto de Flores, antes administrado pelo aeroclube do Amazonas.
Em 22 de outubro, a Infraero e o aeroclube chegaram a um acordo, e este terá 40 dias para deixar o terminal. A Infraero, em nota, diz que "sempre esteve aberta ao diálogo com os entes que integram a cadeia aeroportuária" e afirma que o aeroclube ocupava irregularmente o espaço desde 2023. A estatal também diz ter encontrado "problemas de segurança e infraestrutura no aeroporto", o que a escola nega.
Em Luziânia, a 60 quilômetros da capital federal, o aeroclube de Brasília também é alvo de uma ação de despejo, ainda em tramitação.
O CEO da Associação Brasileira de Aviação Geral (Abag), Flávio Pires, avalia que muitos aeroclubes sobreviveram "em cima de subsídios", porque não tinham gestão profissionalizada. Ele afirma que a demanda de formação será suprida pelo mercado privado e ressalta que o problema hoje não é o número de pilotos, mas a falta de profissionais com maior rodagem:
" Nosso problema é o meio do caminho entre a escola, que dá os primeiros passos, e os pré-requisitos para ocupar uma cadeira em um jato executivo, em um voo comercial. Hoje estamos no limiar de faltar piloto. O Brasil tem muito piloto com 2 ou 3 anos de experiência, e eu preciso de pilotos com 7 ou 8 anos de experiência.
O presidente da Associação de Pilotos e Proprietários de Aeronaves, Humberto Branco, critica a falta de políticas públicas para a formação de pilotos:
" O Brasil não tem a menor ideia do que significa uma política estruturada para criar as novas gerações de aviadores. Não temos uma estratégia para que as instituições mantenham seus aviões atualizados, para formar instrutores de alta qualidade.