‘Só o mundial em casa para superarmos paris’
Entrevista
Entrevista
Em Paris-2024, a ginástica rítmica viveu a eliminação do conjunto nas eliminatórias, apesar das chances reais de conquistar um pódio inédito. Ouro no Pan de Santiago-2023 e finalista nos dois últimos Mundiais, a equipe foi prejudicada por uma lesão de última hora. A ginasta Victória Borges sofreu uma contratura na panturrilha durante o aquecimento e, sem possibilidade de substituição, competiu mancando na série de fitas e bolas. Incapaz de executar os movimentos mais complexos, deixou o ginásio carregada, e o Brasil terminou em nono.
Um ano depois, o grupo reencontra a chance de fazer história, agora diante da torcida. Pela primeira vez, o Mundial será realizado no Hemisfério Sul, entre 20 e 24 de agosto, na Arena Carioca 1, no Rio. Ao som de "Evidências" na série mista e um repertório que exalta a brasilidade nas fitas, o conjunto soma títulos importantes em 2024: três ouros na Copa do Mundo de Portimão, um ouro e um bronze na etapa de Milão e triplo ouro no Pan de Assunção, mesmo com a equipe reserva. Em entrevista ao GLOBO, a técnica Camila Ferezin conta como a seleção virou a página da frustração olímpica e projeta o que atletas e comissão técnica consideram o momento mais importante da temporada.
Como o grupo se recuperou?
Quando a Olimpíada acabou, demos um mês de férias para elas, para que pudessem descansar a cabeça. Eu e a equipe toda multidisciplinar ficamos em Aracaju (na concentração da seleção permanente) para cuidar da Borges. Quando as meninas foram convocadas, a psicóloga fez uma reunião com todo mundo. Falamos sobre coisas positivas, desafios, o presente e o futuro. Finalizamos tudo ali. A partir daquele momento, que a gente virou a página, a gente já começou a pensar no Mundial. Deus é tão bom que... só um Mundial em casa para a gente superar o que aconteceu em Paris, levantar a cabeça, seguir em frente e continuar trabalhando atrás dos nossos sonhos. Não tivemos tempo para desistir.
Como foi esse papo?
Foi um papo coletivo, cada uma falou um pouco. Sentamos em um lugar aberto, cheio de árvores e a gente falou de tudo, tocamos no assunto, como foi, como cada uma se sentiu. E foi. Passou. Dali em diante eu estava atrás de novas músicas para as séries, as meninas voltaram aos treinamentos.
Ficou algum sentimento?
Todas foram unânimes em dizer que não iam desistir e que continuaríamos até a gente conseguir (pódio olímpico ou mundial). E vamos conseguir na nossa casa. Esse Mundial em casa é o ânimo, a nossa motivação. Não dá mais para olhar para trás, já foi. As meninas são muito resilientes e super especiais. E isso virou um propósito. Deus sabe das coisas e a hora certa vai chegar para nós. Confiamos nisso.
E o que significa esse Mundial em casa?
Era uma utopia, a gente nunca imaginou que um dia a gente teria um Mundial no Brasil. Eu como treinadora e ginasta, na minha vida inteira, nunca imaginei.
Victória Borges está recuperada?
Ela retornou aos treinamentos e continua com a sua reabilitação. Está com a gente no dia a dia e também vai ao Mundial. Ela ajuda muito as meninas e me ajuda também, deste lado de cá. É quase minha assistente. Preciso de alguém para filmar o treino? Entra Victória Borges. Faltou uma ginasta no grupo reserva? Entra Victória Borges. Está muito feliz com os resultados e de fazer parte de tudo.
E como o seu time chega ao Mundial?
Em Portimão, a gente pensou... "uau, três ouros". E logo depois mandamos o time reserva para o Pan-Americano e ganhamos as três de ouro também. Em Milão, mais um ouro na prova olímpica (somatório das duas séries). Das cinco etapas deste ano, entre Copa do Mundo e World Challenge Cup, o Brasil é o único país que conquistou duas medalhas de ouro no conjunto geral. A nossa hora já está chegando.
E como elas se sentem em competir no Brasil?
É um desafio gigante. A primeira vez que haverá um Mundial no Brasil. Quem estava na Olimpíada do Rio, em 2016, fui eu e a Bruna (comissão técnica). Nenhuma destas ginastas. Então, para elas é um momento desafiador. Tem as coisas positivas, como não ter de fazer uma viagem longa, sem fuso horário, com a alimentação que estamos acostumadas, mas o resto não muda nada. A gente tem de entrar na quadra, competir, e tem de acertar. Temos de usar a nosso favor o fato de ter a torcida com a gente. Acho que o nosso maior desafio é esse, não levar para o lado da pressão. Tecnicamente nosso país está entre os melhores, temos uma coreografia forte, de dificuldade alta e elas precisam apenas pensar em acertar a série. Pela primeira vez a gente está indo para o Mundial em condições de ganhar uma medalha. Mas, jogo é jogo e treino é treino.
Serão as mesmas coreografias apresentadas nesse início de ano, certo?
Sim, na série mista, que neste ciclo olímpico é disputada com três bolas e dois arcos, a gente tem a coreografia ao som de "Evidências". A gente sonhou com uma música que o público cantasse e acho que isso vai acontecer, será um ponto positivo para nós, um ginásio lotado cantando a música... Essas coisas impressionam bastante os árbitros e será bem único de viver. E a outra série, com a mesma música de Paris-2024, era com fita e bola e adaptamos para as cinco fitas. Permanecemos com esta música porque tem um significado importante para nós. Queremos entrar de novo em um momento tão especial com essa música, que tem o samba e o estilo brasileiro. Agora é acertar as séries.
Aquele frio na barriga, vontade de ir ao banheiro... elas sentem isso?
Elass são preparadas para isso. Já se apresentaram na Arena do Mundial, em Milão, e tinha muito público. A verdade é que elas foram preparadas ao longo de todos esses anos. A dificuldade está na construção do dia a dia. E isso a gente já construiu.
O que a seleção viveu em Paris preparou para este momento?
Com certeza estamos mais preparadas do que estávamos para Paris. Cada desafio nessa jornada nos faz crescer. Nosso time dentro da quadra, as ginastas, e nossa equipe fora das quadras, a comissão técnica, amadureceram bastante. Desde então a gente trabalhou incansavelmente pensando em onde poderíamos melhorar.
E tem o sentimento de merecimento, não?
Uma contusão pode acontecer, claro. É evidente que a galera que torceu e viveu tudo aquilo com a gente... Pessoas que nem acompanhavam a GR e que passaram a torcer por nós. Milhares de pessoas torcem pela gente agora porque viveram tudo aquilo com a gente. Esse merecimento, esse sentimento existe não só no grupo, existe no público. E essa energia é muito favorável para nós.
Camila Ferezin / técnica da seleção